Esse projeto é um convite para quebrar o tabu. Um canal de inspiração e de informação para quem vive o luto e para quem deseja ajudar

As pedras e o caminho

Do Caminho de Santiago de Compostela, trilhado nove meses após o falecimento da mãe, a psicanalista Hellene Louise Silveira Fromm trouxe vários aprendizados, como saber que ser forte é também saber pedir e aceitar ajuda. A experiência transformadora também a inspirou a escrever um delicado conto infantil. Conheça a história dela

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Era manhã do dia 31 dezembro de 2014, apenas alguns dias depois da morte da minha mãe, que se foi na noite de Natal de forma rápida e intensa. Maria da Penha, aos 59 anos, cheia de planos e com muitos sorrisos e aventuras a serem compartilhadas com os cinco netos, partiu inesperadamente. Meu marido e eu guardamos a notícia nesses primeiros dias e então resolvemos que era hora de contar às nossas duas filhas que quando chegássemos em Salvador, cidade onde passei a infância e onde minha mãe morava, elas não veriam a vovó. Eu não tinha me recuperado ainda daquele dia 24, de atender o telefonema da minha irmã contando da partida da mamãe, do congelamento que aquela notícia trouxe ao meu corpo e à minha alma, da correria de pegar o avião para encontrar o meu irmão e minhas irmãs – não para festejar, mas para juntos nos despedirmos da nossa mãe. Ainda assim, pedi que fosse eu a contar para as meninas, Gabi e Clara, de 4 e 2 anos, respectivamente. Olhei para as duas e comecei:

– Gabi e Clarinha, eu tenho uma coisa para contar. Quando nós chegarmos hoje na casa da vovó, lá em Salvador, a gente não vai encontrar com ela.

Gabi: – Por que, mamãe?

– Ah… o Papai do céu estava precisando de uma costureira muito boa lá no céu para fazer as roupas dele, então chamou a vovó para morar lá em cima. Ela mora junto com as estrelas agora, lá no céu.

Gabi: – Mãe, você esta querendo dizer que a vovó morreu?

O ressoar desta pergunta adentrou o meu coração e a minha mente e lá se instalou. Demorei um tempo, dias, meses para entender que tinha inserido elementos e uma arquitetura complexa para – talvez – fugir do simples, lugar que a minha filha me convidou a reencontrar e, assim, finalizei a resposta à ela com um singelo sim, seguido de um abraço apertado.

Para quem eu estava contando aquela história? Quem era a criança que eu queria acessar e consolar com essa fala lúdica: às minhas filhas ou a mim?

Foram essas perguntas e uma sensação esquisita de estufamento – parecia que nada mais cabia dentro de mim – que me fizeram tirar da gaveta a vontade de fazer o Caminho de Santiago de Compostela. Precisava colocar para fora, meio que “esvaziar”e o Caminho, agora, fazia mais sentido do que nunca. Ele já havia sido pauta de diversas tentativas, pelo menos quatro, que nunca deram certo por outras surpresas da vida com o nascimento das minhas filhas.

Decidimos, eu, meu marido e um casal de amigos queridos, fazer o Caminho Francês, de 801Km, saindo de Roncesvalles, primeira cidade espanhola depois da França. Não veríamos a beleza magnífica dos primeiros 25kms que atravessam os Montes Pirineus porque de bicicleta era correr um risco desnecessário já no início da jornada. Tudo decidido, partimos em setembro de 2015. Meio dia de descanso e na manhã seguinte a nossa chegada, começamos. Com aquele início empolgante que as férias e a realização de um sonho sempre me trazem, eu só não sabia que o Caminho iria além do pedalar e que ele me reservava aprendizados inimagináveis.

Existia a euforia e a empolgação de pedalar em grupo mas o trajeto era, ao mesmo tempo, solitário, e isso fazia com que a minha cabeça pensasse em um milhão de coisas, parecia um seriado de ação sem intervalo para comercial. Tínhamos percorrido pouco mais de 20kms – sempre pelo caminho pois tínhamos resolvido que não pegaríamos atalhos pelas estradas – e passamos por uma trilha estreita (de um lado um paredão e, do outro, um barranco cheio de buchinhos recheados, espinhos e amoras). Pedalava devagar e entre uma pedra pequenina e um peregrino que observava algo, me desequilibrei e rolei barranco abaixo… Caí de barriga para cima e senti os espinhos por várias partes do corpo. Senti a dor da bicicleta pressionando a perna esquerda e quando abri os olhos me deparei com aquele céu azul, limpo sem nenhuma nuvem. Me perguntei o que estava fazendo? Onde estava? Queria tanto estar ali e não estava. Mal terminei de pensar e um dos nossos amigos me puxou pela mão, me ajudou a levantar. Subi na bicicleta e me propus um desafio: estar o tempo todo presente no Caminho, atenta a ele, ali, no aqui e agora e, mesmo depois de tantos anos de meditação, acho que nunca tinha experimentado momentos de atenção tão plena e estados meditativos quantos nos dias que se seguiram.

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Décimo dia e desde aquele primeiro episódio, tudo corria bem. Tinha conseguido me ater ao meu compromisso de estar presente. Me sentia mais leve, mais esvaziada, a mente e as emoções mais equânimes e a passagem pelo o temido Cebreiro, o ponto mais alto do Caminho, chegou. Saímos cedo da hospedagem, uma tormenta forte e com muito vento já havia sido anunciada e a recomendação era chegarmos ao cume antes do meio-dia, um desafio enorme. Não conseguimos e pouco antes de chegar lá já enfrentávamos uma chuva intensa, muito vento, frio e, em mim, muito medo.

O tempo havia fechado tão gravemente que os passarinhos não conseguiam voar e formavam quase um mar de pássaros no chão devido à neblina. Não quisemos nos demorar muito por lá, a chuva apertava mais e mais e seguimos, numa decida sofrida por causa do vento contra que exigia muito esforço no pedal. De repente, uma nova subida… que me exigiu não só as últimas forças do corpo, como também, foi a mola propulsora para empurrar para fora o resto das emoções que estavam guardadas lá no fundo. Simplesmente não conseguia mais … uma série de perguntas misturadas com chuva e choro descontrolado me fez descer da bicicleta e desistir. Falei para o meu marido que aquilo era loucura, por que eu tinha resolvido fazer aquilo? Tudo doía, eu estava esgotada. Ele desceu da bicicleta, segurou minha mão, pegou a minha bicicleta e sem falar nada, andamos um ao lado do outro. Não sabíamos, mas estávamos só a poucos metros do final da subida, onde um abrigo acolhedor nos esperava. Sentamos à mesa e eu tomei o primeiro gole do chá quente que me foi oferecido. Entendi que eu precisava deixar as pessoas cuidarem de mim, precisava dar permissão a elas para isso: ser forte é também saber pedir e aceitar ajuda.

No dia seguinte não pedalamos, o vento estava extremo e era arriscado. Não queríamos que nada mais acontecesse, afinal só faltavam 115km até Santiago. Outro dia começou e o sol raiou novamente. Saímos da hospedagem e logo depois de atravessar Sarria entramos no Caminho. Experimentei, na pele, nos olhos e no cheiro maravilhoso de floresta, o significado do dito popular: depois da tempestade sempre vem a bonança. E as terras Gallegas, com sua espetacular resiliência, se apresentavam deslumbrantes com seus vales limpos e verdes e seus rios serpenteando caudalosos, conduzindo nosso caminho até Santiago.

Voltei para casa abastecida de leveza: antes de ir, a minha sensação é de que nada mais cabia dentro de mim, eu estava estufada, cheia e cair do meu pedestal – digo, da bike – fez com que eu relaxasse, que eu pudesse começar o caminho de volta até mim. Também percebi que fazia parte de uma irmandade que não era secreta, mas aberta a quem quisesse entrar. O caminho me provia tudo que eu precisava: água fresca, frutas e quando estávamos perdidos sempre havia alguém para nos ajudar com sorrisos, abraços e muitas palavras de incentivo. Caiu a ficha que eu também tinha tudo isso aqui em São Paulo, eu só não conseguia fazer o exercício de me abrir para isso e de proporcionar o mesmo aos outros. 

E, por fim, mas não menos importante, aprendi sobre o estado de presença. Como as minhas conversas, comigo e com todos, ficaram melhores depois de Santiago! Olhar mais no olho, ouvir atentamente, e não só com os ouvidos mas com o corpo inteiro. Até entendi o que um cara tinha me dito aqui em São Paulo, antes de viajarmos: você sai do Caminho, mas nunca deixe o Caminho sair de você.  

 

“As pedras e o caminho”

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Meses depois, transformei toda essa experiência num conto infantil chamado ‘As Pedras e o Caminho’ que agora, tenho certeza, foi uma história que criei para ajudar, cuidar e nutrir a minha criança e, quem sabe, outras crianças pelo mundo afora. Esse pequeno livro pode ser encontrado nesse link e eu conto mais sobre a viagem e a preparação do conto no vídeo abaixo:

 

Hellene Louise Silveira Fromm, 35 anos, é casada, mãe de duas meninas, apaixonada por filosofia, psicanálise e gente e muito recentemente descobriu-se autora.