Esse projeto é um convite para quebrar o tabu. Um canal de inspiração e de informação para quem vive o luto e para quem deseja ajudar

Orquídeas não morrem

O que fazer em momentos de dor? Por onde começar? Cada luto é singular. Prudenciana Rangel de Azevedo, psicóloga e terapeuta do luto, resolveu contar em livro a história de vida da sua filha Luíza e também sobre a dor de perdê-la precocemente

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“Se eu pudesse ser uma flor, escolheria ser uma hortênsia. E você, que flor gostaria de ser?” perguntou Prudenciana à sua filha Luiza, depois de serem surpreendidas por um jardim florido na chegada à casa da família no interior, fechada há 15 dias. 

Rapidamente, Luiza respondeu: “Eu seria uma ORQUÍDEA. Orquídeas não morrem, mamita! São delicadas, lindas, frágeis e não chamam muita atenção logo de cara. Muitas vezes parecem solitárias, mas sempre têm uns gominhos agarradinhos e eles logo renascem com mais flores. Às vezes, deixo-as tristinhas, mas quando volto aqui, elas estão bem vivinhas denovo. Olha só, sempre ressuscitam!”

“A própria Luíza deu origem ao título que viria, em parte, a ser sua memória de vida”, nos conta Prudenciana nas primeiras páginas do livro “Orquídeas não Morrem”, lançado em 16 de Agosto de 2016, mesma data de aniversário da sua filha. Luíza morreu em um acidente de carro em 2012 aos 35 anos e, seis meses depois, a mãe da autora também faleceu deixando-a ainda mais desolada. Inicialmente, escrever foi a estratégia encontrada por Prudenciana para preencher as tenebrosas madrugadas. Com o tempo, o livro foi ganhando corpo e o projeto passou a preenchê-la também. Entendeu que seria interessante apontar a possibilidade do enlutado ressignificar a própria vida e, como a Fênix da mitologia grega, se reerguer das cinzas. Chegou ao fim da escrita com a certeza de que o amor permanece intenso, mesmo com a ausência física. São como orquídeas que não morrem. 

Separamos dois trechos do livro para que possamos inspirar outros pais que vivem esse momento tão desafiador a, quem sabe, encontrar na caneta e papel (ou no teclado de um computador) aliados no processo de luto:

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“Na noite do dia 24/01/2013, ao deixar o Hospital, destruída pelo sofrimento da minha mãe, perturbada e sem sono, querendo estar naquele CTI, com uma saudade enorme no peito, escrevi essa carta para minha filha:

Carta (nunca lida) para minha filha Luíza:

Lu, por um piscar de olhos, você se foi. Nunca saberemos ao certo o que de tão grave ocorreu naquele último minuto da sua vida. O único fato concluído é que o acidente foi provocado por outro carro, que colidiu na traseira do seu e causou toda essa tragédia.

Mas… Vamos aos fatos: seis meses hoje que o silêncio, o vazio e a sua ausência têm me (ou nos) feito chorar. Perdi o conceito de tempo, ou melhor, de muita coisa. Mas ao mesmo tempo, com o sofrimento, revi outros que precisavam ser mais bem avaliados. Ainda estou sentindo o mesmo impacto do momento em que recebi a notícia. Por isso, digo que perdi a noção de tempo. Seis meses, seis dias, seis horas, tudo a mesma coisa.

A notícia perpassou primeiro pelo seu irmão, que você sempre tentou poupar. Mas não deu. Ele, como eu, acionamos nosso mecanismo de defesa e negamos o que estávamos ouvindo. Isso não é verdade! Caímos na real a duras penas. “Contra fatos não há argumentos”. Seu corpo estava ali, todo quebrado, diante da pessoa que transmitia a notícia. Eu precisava acreditar. E mais: precisava fazer com que toda a família também acreditasse, pois não poderia esconder. Sinceramente, filha, nem sei que papel eu desempenhei diante de tamanho desespero, apenas lembrei que você sempre acreditou na minha força. Coloquei-a em prática. No último dia Das Mães, você me fez uma linda declaração de amor, e nela cita que uma das minhas características era ser uma guerreira, que vence as batalhas da vida real. Por que escreveu isso? Você me pôs à prova. Entendi que não poderia te decepcionar naquele instante. Fiz-me de forte. As palavras do Apóstolo Paulo vieram a minha mente: “quando estou fraca, aí é que sou forte”.

“Eu vivo sim, estou vivendo”. Tenho dado essa resposta às pessoas que me perguntam como estou. Filha, como sempre acontece, percebo que algumas pessoas (sempre muito sensível para enxergar isso) já te esqueceram. Para alguns, você já passou para uma vida melhor e ponto final. Para outros, sinto que não. Ainda lembram com choro e voz trêmula. Mas é assim a vida. Cada um vive a saudade num determinado tempo. Entende disso muito bem, eu sei. Mas eu nunca vou te esquecer… eu nunca mais vou te esquecer, meu amor. Não se preocupe. Você marcou a minha vida, surpreendentemente. Nasceu, viveu, morreu na minha história. Impossível te esquecer.

Foi com você que eu me tornei mãe. Arrisco mesmo a dizer que o dia 16 de agosto foi o dia mais feliz da minha vida. Ainda mais quando tive a surpresa de saber que era uma menina. Eu, seu pai, sua avó e alguns amigos que assistiam “de camarote” o seu nascimento, ficamos emocionados. Claro que eu e seu pai, muito mais. Você era a nossa primeira Obra Prima! A primeira, e permaneceu a única neta. Eu ganhei um presente, mas também ofereci a família um presente muito esperado: uma menininha, que pode levar o nome da sua avó paterna, grande desejo do seu pai.

Lu, o mundo fora da maternidade, naquela terça- feira, chorava a morte de Elvis Presley, e nós, do lado de dentro, estávamos vivendo o momento mais feliz da vida, com o seu nascimento. Pena que durou tão pouco! Numa outra terça-feira, tão próxima, eu vivi (vivemos) o momento mais triste, mais doloroso, mais desesperador vivido por um ser humano: a sua morte.

Você lembra que sempre me incentivava a escrever um livro? Pois é Lu, estou escrevendo (tentando). E é sobre você. Sua vida valeu a pena! Já pensei em vários títulos, entre eles: De terça a terça. Pena que não vai poder dar seu palpite. Sempre dei crédito aos seus palpites. Sempre acertava. Foi uma pessoa iluminada. Tive o privilégio de ser sua mãe. E muitos dos seus amigos e amigas mencionam que, quem não te conheceu, perdeu uma grande chance de conviver com uma pessoa tão meiga, amiga, de sorriso largo e por aí vai… Ainda bem que muitos te falaram isso.

Alguns têm se comunicado comigo constantemente, outros nem tanto. Gosto muito quando falam de você e apontam suas qualidades. Engraçado é que me parabenizam pela filha. Imagina, você conduziu a sua vida e se tornou a pessoa que se tornou pelos seus méritos e sensibilidade. Ouvi uma pessoa me dizer esses dias: “Sabia que eu a chamava de alegria?” Eu não sabia. Já te deram tantos adjetivos…

Muita coisa tem acontecido depois que você se foi. Coisas boas e tristes. A sua afilhada nasceu logo em seguida, no dia do seu aniversário. Que presente de Deus! Ela é linda, e é minha afilhada. Já disse aos pais dela que não vou conseguir te substituir muito bem, mas estou tentando. Seu irmão foi trabalhar em São Francisco mesmo, como esperado. Estou contando, pois sei do seu orgulho. Afinal, você o educou muito bem. Obrigada, minha filha, por desempenhar esse papel de mãe tão bem na vida do seu irmão. Foi uma grande ajudadora. Mesmo sendo tão novinha.

Lu, seu irmão tem sentido muito a sua falta. Toda vez que vem de viagem, traz um presentinho e coloca no seu quarto. Seu relógio, que ainda não veio. Não se preocupe, não estamos loucos, não. Ele faz o que pode para guardar a sua lembrança, eu e seu pai também. Claro, fazemos algumas doideiras, sim. Algumas pessoas não entendem muito bem e nos chamam a atenção. Nós as entendemos, querem o nosso bem. Você sabe, somos muito amados.

Uma coisa muito triste: sua vozinha enfartou, está no CTI. Como ela tem sofrido sem o seu carinho! Temos lembrado muito da forma como lidava com a ela. Hoje tenho certeza que estaria dentro do CTI, a qualquer preço, passando a noite, de preferência no cantinho da cama, convencendo o hospital todo de que sua vó precisava muito do seu carinho e não só de remédios. Já até rimos disso. O hospital ia acabar se convencendo de que era de fato uma verdade. Seu jeitinho de lidar com os doentes era encantador. O hospital ia se convencer dessa nova modalidade de tratamento. Enfim… você não está mais aqui e sua vozinha está sozinha no CTI.

(…)

Minha filha, há seis meses que nunca mais dormi, praticamente. Penso em você 24 horas por dia, e ainda acho pouco. Seu perfume ainda está pela casa, mesmo ela estando bem vazia. Sinto muito a sua falta, muito mesmo. Doem “até os ossos”, como você dizia quando sentia falta de nós. Lembra quando fomos para a Nicarágua? Sempre usava essa expressão.

Já sonhei três vezes com você nos poucos minutos de sono. Numa das vezes, eu, seu pai e seu irmão subíamos uma longa escada e, quando entramos num lindo local, você veio ao nosso encontro, cantando uma música para nos receber, filha.

Tenho muito mais coisas para te dizer, mas vou parando por aqui. As lágrimas me sufocam e não tenho como prosseguir. Nada mudou entre nós. A saudade é grande demais, eu não posso esconder a falta que você me faz.

Sua mãe, 24 de janeiro de 2013.” 

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“Resiliência: enfrentando a dor do luto

“Mami, você é minha inspiração. Minha guerreira, que vence as batalhas da vida real.” Luíza

Gostaria de pensar e ter como verdade a seguinte afirmação: a vida nunca me decepcionaria e eu seria feliz para sempre, como era até então. Mas, a realidade apontou outra direção para mim. Aquilo que esperava que nunca acontecesse comigo, um dia aconteceu. Uma palavrinha simples e não mágica: sempre, mudou totalmente a minha história. Essa palavra soa forte. Tem um grande potencial no contexto da vida em geral.

A expressão resiliência foi emprestada da Física pela Psicologia. Na realidade, na Física esse termo é utilizado como uma forma de mostrar a capacidade que um corpo tem de passar por um agente externo ou uma ação de força violenta e retornar a forma natural. Um exemplo seria o elástico. Uma ação externa pode esticar o elástico até o seu limite, mas, quando essa ação é cessada, o elástico volta a ser um elástico. Tem a capacidade de retornar ao seu estado normal, após sofrer uma tensão.

A Psicologia usa como forma de apontar a capacidade individual do ser humano em suportar as adversidades da vida, superar obstáculos, tensões e até mesmo uma vontade enorme de morrer. Contudo, esse indivíduo após todas as experiências vividas, uma vez sendo resiliente, retornaria a capacidade normal, sem deformação. Na minha experiência, preciso entender melhor esse termo.

Será que se aplica totalmente ao meu contexto? Escrevo sobre algo que eu vivi e vivo a cada dia, nessa minha nova jornada. Portanto, preciso ser sincera nos meus relatos e me manter viva a cada dia. Fui atravessada por circunstâncias avassaladoras. Não quero dizer com isso que sou a única no mundo. Muitas mães, filhas, esposas, irmãs, netas, avós já passaram por contextos semelhantes. Como cada uma tem reagido? É uma resposta muito pessoal. Essa potencialidade é de cada pessoa, portanto, ela é variável e perpassa um contexto social, familiar e das próprias experiências de vida. Neste livro, no entanto, abordo a minha experiência e como tenho lidado com tamanha adversidade.

(…)

O psicólogo e escritor George Souza Barbosa propôs que se considere a resiliência como uma combinação de fatores que propiciam ao ser humano condições para enfrentar e superar problemas e adversidades.

Meu pensamento sobre essa afirmativa do autor acima é que, realmente, o contexto social e familiar, sobretudo as palavras de otimismo, ouvidas na infância, e os exemplos de superação a serem seguidos, como os que observei em meus pais, fazem a resiliência tornar-se palavrinha mágica, e fica fácil acreditar que as coisas podem mudar para melhor.

Meus pais injetaram na minha vida um sentimento contínuo de esperança, de autoestima, e de muitos outros valores. Nem imaginavam o efeito que me causariam na vida adulta essas palavras proferidas ao longo da minha infância e adolescência. Sem nenhum conhecimento teórico a respeito da palavra “resiliência”, eles transmitiram a convicção da capacidade de controlar o destino da minha vida, mesmo quando o poder de decisão estivesse fora das mãos, ou seja, quando todas as minhas forças já tivessem se esvaído.

Não posso esconder que, no meu caso, essa palavra não se aplica totalmente. Sou forte, sou guerreira, suporto dores, luto a cada dia para viver. Mas, até agora, ainda não consegui chegar ao meu ponto de partida, ou melhor, não consegui me ressignificar totalmente, a ponto do corpo, da alma e das emoções entenderem que é possível. Nem a vida se normalizou.

Não, não é bem assim. Eu estaria dando um depoimento contrário a minha capacidade e a minha realidade atual. Meu ritmo mudou, minha saúde ficou comprometida, minha casa esvaziou, as asinhas do frango passaram a sobrar, os dias ficaram mais longos. Enfim, muitos movimentos se perderam e adquiri novos. Bom ou ruim? Não saberia responder. Só sei que enxergo a vida bem diferente de outrora.

O que posso observar e concluir a respeito do assunto, é que tenho tido a capacidade de manter o equilíbrio emocional, desenvolver e buscar, a cada dia, novas habilidades para me reinventar, seguir e viver a partir de um vazio deixado pela partida da minha filha, que nunca mais será igual. Portanto, asseguro que sou uma pessoa, em parte, resiliente. Mesmo nas piores condições, pessoas resilientes tentam se levantar, quando a vida ousa derrubar.

No que parecia ser o fim, encontrei o recomeço.”

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Onde encontrar:

O livro “Orquídeas não Morrem” pode ser encomendado diretamente com a autora pelo Facebook ou pelo telefone (21) 99810-8013. Duas livrarias em Niterói também possuem exemplares disponíveis: a da UFF (Rua Miguel de Frias, 9, Icaraí) e a Livraria Guttemberg (Rua Cel Moreira Cesar, 211, Icaraí). 

Prudenciana Rangel de Azevedo é psicóloga, terapeuta do luto, palestrante, mãe de Luíza e Ricardo e mora no Rio de Janeiro.