Esse projeto é um convite para quebrar o tabu. Um canal de inspiração e de informação para quem vive o luto e para quem deseja ajudar

Faço por minha irmã o que ela não pode mais fazer

Mayara nos procurou para contar a sua história: ela tem apenas 17 anos e perdeu sua única irmã, Amanda, que sofria bullying e teve uma embolia pulmonar após uma cirurgia bariátrica. Mayara tem encontrado nas redes companhia para o seu luto e transformado a dor em um propósito: "passei a ter um olhar mais carinhoso para as pessoas que precisam de nós duas, que sofrem por suas diferenças, que não se aceitam e que são invisíveis aos olhares comuns”

Depoimento dado a Annamaria Marchesini

arquivo pessoal

Quando Amanda, de 19 anos, decidiu fazer a cirurgia bariátrica, a estudante de Direito Mayara, 2 anos e 7 meses mais nova, tinha certeza de que finalmente sua única irmã se livraria do bullying que a impedia de ter uma vida normal. Mas em janeiro deste ano, 10 dias depois da operação, Amanda não resistiu a uma embolia. Passado o choque, Mayara encontrou força para enfrentar a ausência de Amanda na internet ao ler os relatos do site “Vamos falar sobre o luto?”, para onde mandou um email contando o que havia acontecido. E, ao desabafar em sua página do Facebook, descobriu que a história de sua irmã poderia ajudar muita gente.

“Todos os dias eu acordo, lembro que ela não está mais aqui e me pergunto o que vou fazer sem Amanda. Ainda não sei quem sou, porque ela é metade de mim”, diz Mayara, hoje com 17 anos. Enfrentar na adolescência a morte da pessoa com quem convivia durante 24 horas foi, para ela, “devastador”. “Sempre me preparei para perder meus avós ou até mesmo os meus pais no futuro, mas nunca me imaginei sozinha para encarar estas dores. Sabia que ela estaria ao meu lado. Perder a Amanda aos 16 anos foi meu maior sentimento de fracasso e de perda. Amadureci muito em pouco tempo. Foi necessário, mas será sempre muito doloroso.”

De janeiro para cá a vida de Mayara se transformou. Ela, que estudava na mesma classe da irmã, não conseguiu mais ir à escola. Fez supletivo e passou em Direito. Tornou-se filha única e, para poupar os pais, evita desabafar com eles a saudade que sente de Amanda. Uma parte de seu tempo é dedicada a conversar com quem a procura nas redes sociais para apoiá-la ou para contar histórias parecidas com as de sua irmã. “Minha forma de pensar mudou completamente. Hoje eu faço por Amanda o que ela não pode mais fazer, eu espalho o amor da minha irmã. Passei a ter um olhar mais carinhoso para as pessoas que precisam de nós duas, que sofrem por suas diferenças, que não se aceitam e que são invisíveis aos olhares comuns”, diz. Em sua página do Facebook, Mayara conta histórias vividas pela irmã mais velha e escreve cartas para ela. “ Sei que ajudar as pessoas em memória de Amanda a faz feliz”, afirma. “E o apoio que eu recebo de quem lê o que escrevo me ajuda muito a lidar com a dor.”

Mayara vive em Campos de Goytacazes (RJ). Pelo Skype, entre mais sorrisos do que lágrimas, Mayara conta a história de Amanda:

“Éramos muito unidas. Meus pais sempre trabalharam fora e Amanda cuidava de mim. Eu era magrinha e ela sempre foi forte. Adorava comer. Era ansiosa, compulsiva e tudo era motivo para que comesse e, por isso, engordasse. Apesar do bullying ter começado quando tinha 8 anos, ela só começou a sofrer com isso aos 11. Os colegas a rejeitavam. Até professores e parentes implicavam com o físico de minha irmã.

Um dia, a moça que trabalhava em nossa casa foi buscá-la na escola e ficou chocada ao ver os meninos a impedindo de sair da sala de aula. E quando ela conseguiu escapar, bateram e a chutaram. Não foi só desta vez. Amanda sempre chegava da escola com manchas roxas. Quando minha mãe ia se queixar e pedir providências, os professores justificavam a violência das crianças e nunca fizeram nada para evita-la. Mesmo eles não a poupavam de comentários maldosos. Uma professora chegou a dizer para Amanda que ela parecia um mamute quando corria. Minha irmã não contava nada para nós. Sofria sozinha.

Por causa do bullying, somado a um déficit de atenção que ela tinha, Amanda foi perdendo a vontade de ir à escola, desanimando e repetiu o ano duas vezes: na 5ª. e na 9ª. séries do ensino básico. Com dois anos de atraso, não só ficou na mesma série que eu, como na mesma sala de aula. A partir daí, além de irmã, amiga e mãezona, Amanda passou a ser minha colega de escola até o ano passado, quando cursávamos o 2º. ano do ensino médio. Era um grude: dormíamos juntas, estudávamos juntas, passávamos o dia uma com a outra. Depois que ela partiu ficou impossível para mim continuar na escola. Então, no meio deste ano, fiz supletivo para concluir o ensino médio e passei em Direito.

Na verdade, Amanda não tinha nenhum problema em relação ao próprio corpo. Era vaidosa, gostava de se maquiar e de se vestir bem. O problema dela era o que os outros falavam e comentavam. Tentou emagrecer com regimes, exercícios, foi a psicólogos, tomou remédios para ansiedade. Chegou a emagrecer 9 quilos. Mas voltou a engordar. O bullying a incomodava demais. Quando íamos ao shopping, Amanda não levava a bandejinha de lanche para a mesa com medo de comentários. Ela nunca saía comigo e com meu namorado. Dizia que as pessoas iam pensar: “lá vai a gorda que não consegue arrumar namorado”. E, com isso, ia comendo e engordando cada vez mais, 10 a 15 quilos em um ano. Depois de um tempo, já não andava de ônibus e nem ia mais à academia por medo e vergonha de não passar nas catracas. Pesava 169 quilos e estava infeliz.

Eu tentava ajuda-la brincando e a fazendo sorrir. Quando éramos pequenas, sempre que percebia que ela estava triste eu a chamava para brincar. Mais velhas, eu fazia piadas e conversava até o assunto que a aborrecia ser esquecido. Apesar de Amanda sempre se mostrar forte, mesmo nos momentos de maior fragilidade, eu sabia que precisava de mim.

Um dia ela surgiu com o assunto da cirurgia bariátrica. Tinha 16 anos, mas só com 17 decidiu fazer. Foi a especialistas e fez todos os procedimentos necessários para a operação. Não era apenas pelo peso. Amanda tinha pressão alta e o cardiologista recomendou que fizesse a cirurgia. Ela estava empolgada e tinha certeza de que depois dela terminaria o pesadelo do bullying. Dizia que ficaria bonita, que as pessoas iam gostar dela, usaria manequim 38 e o sofrimento ia acabar. Ela escolheu o médico e se preparou direitinho para a operação.

Mas, no final de dezembro, quando a psicóloga deu o aval para que fosse operada, minha irmã ficou com medo e já não tinha tanta certeza de que queria fazer a operação tão rápido. Quando o médico marcou a cirurgia para dali 10 dias, ela se assustou, mas não desistiu: no dia 17 de janeiro entrou na sala de operações e lá ficou por umas 6 horas. Quando fui visitá-la, Amanda se queixava de muita dor. Fui embora chorando. Tinha certeza de que se as pessoas a tivessem aceitado como era, Amanda não teria sido obrigada a passar por aquele sofrimento. O bullying que ela enfrentava era o que mais me fazia sofrer.

No dia seguinte à cirurgia, minha irmã sentiu dor na perna e o médico receitou um anticoagulante. Foi a única dose que ela tomou, apesar dele saber que minha família tinha histórico de trombose. Amanda melhorou e foi para casa. Cinco dias depois bateu a depressão e o arrependimento por ter feito a cirurgia. Uma psicóloga passou a acompanhá-la e acreditávamos que Amanda ficaria bem. Mas passados 10 dias uma dor fortíssima a levou de volta ao hospital. Os exames nada concluíram. O médico chegou a dizer até que a dor era psicológica, mas ela ficou internada.

À noite, minha mãe acordou com Amanda tentando desesperadamente respirar. Corri para o hospital. O médico estava muito nervoso e nos disse que estavam tentando salvá-la, mas minha irmã não respondia aos procedimentos. Pouco depois nos avisaram que ela havia morrido de embolia pulmonar. Foi tudo muito rápido: recebemos a notícia às 6 horas, o velório foi às 9 horas e, às 15 horas, nós a enterramos.

É recente demais e ainda estamos sofrendo. Eu me sinto só. Perdi minha irmã e minha amiga. Não sei como ser filha única. Um dia, para desabafar, contei o que havia acontecido à Amanda em minha página do Facebook e, além de apoio, passei a receber histórias de quem enfrentou e enfrenta situações parecidas. Por causa dela, muita gente me diz que desistiu da cirurgia bariátrica e decidiu emagrecer de outras formas. Eu me sinto bem em pensar que ela está ajudando outras pessoas.

Ainda não superei a morte da Amanda, mas vou enfrentar. Para não entristecer mais meus pais, quando sinto vontade de falar sobre ela converso com meu namorado João Pedro e minhas amigas Marsele e Sarah. Sempre me pergunto o que faria se Amanda estivesse aqui e faço o que ela, com certeza, gostaria. Quando bate a tristeza e a saudade, eu e meus pais lembramos dela e reagimos. Todos os dias eles se esforçam para superar a ausência da filha mais velha e eu só me desespero quando penso no futuro sem Amanda ao meu lado. Mas sei que ela vai estar sempre por perto e que quando precisar, minha irmã me dirá o que devo fazer, como sempre fez. Tive o privilégio de conviver com um anjo na terra. Amanda era só luz”.