Esse projeto é um convite para quebrar o tabu. Um canal de inspiração e de informação para quem vive o luto e para quem deseja ajudar

A história da Clarice e sua família é a de mais de 140 mil brasileiros

Este é o relato de mais uma perda e do luto que "adoece toda a família" nas palavras de Mara Nogueira, filha de Clarice.
As flores de maio da Clarice.
As flores de maio da Clarice.

Essa é a história da Clarice, do Waldir e de toda a sua família. Na história da Clarice, tem um pouco das milhares de famílias brasileiras que perderam alguém fundamental nessa crise sem precedentes do COVID-19.

Quem conta a reviravolta pela qual passou a família de Clarice e Waldir é a Mara Nogueira, uma de suas 4 filhas. Mara é psicóloga e minha amiga há décadas. Durante duas horas, tive o privilégio de ouvir seu relato sensato e emocionado, que pretende dar um pouco mais de luz ao luto por essa doença, que tem seus contornos e sentimentos muito únicos. Mara também gostaria que sua história fosse um alerta para as pessoas que continuam, em suas palavras, “fazendo tudo igual”.

Como todas as famílias brasileiras, a de Clarice foi surpreendida com o alerta de uma doença desconhecida e a necessidade de isolamento social. Tudo novo, estranho e assustador para o brasileiro. Naquele momento (e infelizmente por toda a pandemia) o brasileiro ficou muito confuso sobre como enfrentar aquilo tudo. Com informações desencontradas, cada um foi decidindo seu destino, pautado pelas informações que tinha e acreditava no momento. Nesse processo, tínhamos a discussão entre o nosso presidente e a ciência, onde um contrariava o outro. No momento em que o brasileiro precisava se sentir seguro e com uma direção, o presidente Bolsonaro aparecia sem máscaras na TV, com frequência e desafiava diariamente as direções dos cientistas, profissionais de saúde e mesmo as do próprio Ministro da Saúde. Foi nessa confusão que Waldir , pai de Mara, decidiu continuar atendendo em sua pequena loja de materiais de construção. “Se não morrer de COVID, eu morro de fome”, era a sua frase. Para levar a vida normalmente, ele também usou como argumento a consideração do presidente Bolsonaro sobre o COVID-19 se assemelhar a uma gripezinha. Eu fiquei muito assustada com esse relato.  Aquilo que eu só imaginava ter acontecido, estava bem ali na minha frente: realmente, o nosso presidente levou seus eleitores a escolherem pelo mais perigoso naquele momento.

A escolha do Waldir (como a de tantas outras pessoas naquele momento) dividiu a família porque, além da questão da idade do casal (79 e 78 anos), Clarice, a esposa de Waldir, era do grupo de risco, tendo diabetes. Ao manter a sua rotina, em uma semana Waldir começou a se sentir mal. Sua primeira reação foi esconder os sintomas da família até que desmaiou precisou pedir ajuda para as filhas e genros. Waldir foi levado para o hospital por seu genro, internado e isolado.

Assim começou o tsunami que envolveu essa família em dias de desespero. A segunda notícia da doença não demorou a se apresentar: Clarice, esposa de Waldir, estava infectada pelo COVID-19. Em ambos os casos, tanto Clarice quanto Waldir, tentaram esconder ou postergar a notícia de seus sintomas, por MEDO e desconforto. Uma hora, porém, se torna impossível de esconder e lá foi Clarice para o hospital. Além de alguns sintomas de COVID, tinha principalmente, uma forte dor no braço. Como os hospitais estavam focados no corona, não deram a devida atenção a essa dor no braço de Clarice, que já era um coágulo formado em consequência do vírus. Mara voltou para casa com a mãe, deixou sua família e se mudou para a casa de Clarice para cuidar dela. Nesse momento, ao conviver com sua mãe infectada, o seu próprio COVID já era quase que esperado. Ele veio, sem sintomas graves e felizmente ficou tudo bem.

Com o pai no hospital e a mãe em casa, com o diagnóstico de COVID-19 mas com poucos sintomas, Mara e Clarice passaram 12 dias que Mara jamais esquecerá. Sua mãe, impressionada com a vivência do marido, tinha  pavor de ir para o hospital e passar pela mesma coisa.

Algumas lembranças felizes , entretanto, marcaram esse período. Como a serenata feita às duas pelo marido e filhos da Mara no Dia Das Mães. Serenata que chamou até os vizinhos para a janela. Assim como as muitas ligações que Clarice recebeu da família toda e amigos. Teve também o vídeo call da UTI com seu pai, graças aos profissionais de saúde, que não abandonaram  Mara  na doença do seu pai ou da sua mãe. Ela agradece especialmente ao Dr. Persis e a Dra. Gabriela, do Hospital Lefort, pela humanidade para além do profissional.

Nesse vídeo call Clarice, além de se emocionar com o marido e pedir-lhe que voltasse para casa, se projetou mais uma vez na experiência dele. Depois desse dia, como conta Mara, Clarice foi virando outra pessoa. Ainda mais preocupada e amedrontada, tentava não transparecer o mal estar para não voltar para o hospital. Mara conta que, nesse momento, sentiu o início de seu luto no coração. E foi em um momento muito simples, ao abrir a geladeira da casa da mãe e a encontrar de uma forma totalmente diferente do que a mãe costumava aparentar. Clarice dava sinais de não ser mais a mesma pessoa. Até o momento em que a febre chegou e Mara não tinha mais o que fazer, a não ser levar sua mãe de volta para o hospital, contra a sua vontade que, nervosa, gritava que não conseguiria mais voltar para casa.

Mesmo nervosa, o último gesto de Clarice em casa, foi olhar seu vaso com as flores de maio florescendo e pedir à filha que cuidasse delas. Este mesmo vaso da foto acima que hoje está na casa da Mara e acaba de dar 4 botões, que ela associa às quatro filhas de Clarice: Tânia, Andrea, Fabiana e Mara.

A situação da família agora era outra: Waldir teve alta enquanto Clarice só piorava. Após 20 dias na UTI, a maior parte deles entubada, a equipe médica ligou para a Mara e suas irmãs sugerindo uma última visita no hospital, dando como certa a partida da Clarice. E foi em um quarto completamente preparado para isso, com os cuidados necessários em relação a transmissão do vírus, que suas filhas e marido puderam ficar algum tempo com a Clarice. Foi o tempo de rezarem junto com ela e por ela, até que os médicos encerraram a visita. Foi ali que a família de Clarice despediu-se dela, que partiria as 18 horas daquele dia, o horário da Nossa Senhora, da qual era grande devota. Depois disso, a família teve meia hora em que puderam rezar junto ao seu caixão completamente lacrado, inclusive embalado com papel filme por fora. Não poder se despedir passa a ser mais uma camada difícil desse luto que deixou na família de Clarice o trauma de um adeus sem abraços e a imagem dos profissionais paramentados fazendo o seu trabalho.

Toda essa vivência foi, nas palavras da Mara, “um adoecimento de toda a família”. Nela cabe amor, saudade e gratidão. Mas também  febre, culpa, arrependimento e solidão. Pouco tempo depois da partida da Clarice, Mara precisava falar sobre a falta da despedida adequada. Como expressão de seu amor e compreensão, fez um curso de edição (@equipeflaviagarrafa) e, junto com a professora, produziu um vídeo em homenagem a todas as famílias que, como a dela, não conseguiram se despedir da forma como queriam de seus queridos.

Fica aqui a história da Clarice, do Waldir e de sua família. Fica o agradecimento da Mara para os profissionais de saúde que funcionam como pontes emocionais nesse sofrimento sem fim. Fica a indignação com um presidente que, ao invés de esclarecer confunde e leva a população a escolhas inseguras. Mas acima de tudo, fica a homenagem à vida da Clarice, a solidariedade à dor da sua família e o desejo de que esse caminho de luto seja suportado pelo amor incondicional da Clarice pelas suas filhas, netos, genros e pelo seu companheiro de vida.