Esse projeto é um convite para quebrar o tabu. Um canal de inspiração e de informação para quem vive o luto e para quem deseja ajudar

Quando o céu está cinzento

O jornalista e escritor Dagomir Marquezi não pressentiu a morte do pai às vésperas de uma cirurgia. Nem previu a depressão, a confusão emocional, o sofrimento e o grande aprendizado que viriam a seguir. Seu relato franco é sobre a fragilidade da vida e as camadas profundas e imprevisíveis do luto

Em 1990 eu vivia na Ponte Aérea, morando em São Paulo e trabalhando na Rede Manchete do Rio. Num dia de abril eu soube que meu pai, Decio, ia ter que fazer uma cirurgia de risco para retirar um coágulo da artéria femural.

Não levei a sério esse risco. Eu tinha visto meu pai escapar da morte certa um monte de vezes. Algumas delas quase cômicas. Como quando ele caiu do telhado tentando ajustar a antena de TV.

Seu Decio Marquezi era um um homem de origem muito simples que havia formado sua família sem ter completado o curso primário. Era um gozador natural, e onde ele aparecia, o bom humor se espalhava. Foi ele quem me ensinou que a música era vital como o ar, ouvindo velhos discos 78 rotações. Foi ele que me despertou o interesse pela tecnologia com sua paixão pelo rádio. Era o meu herói, claro. Quem não quer um pai divertido, presente, generoso, trabalhador? (Ele só não me dava disciplina – isso era tarefa da minha mãe, Dirce).

Decio Marquezi , o herói gozador, com o filho Dagomir
Decio Marquezi , o herói gozador, com o filho Dagomir

Não me esqueço, claro, da última noite que passei com ele como visitante no Instituto do Coração, o Incor de São Paulo, assistindo o último jogo do nosso Palmeiras ao seu lado. Acordamos, tomamos café da manhã e eu pensava despreocupado nas minhas tarefas. Não sentia a sombra da morte se aproximando. Pelo tratamento pré-operatório, proibido de fumar (seu pior defeito) meu pai estava muito bem de saúde, corado. Antes de ir para o Rio dei meu último abraço no meu herói e parti despreocupado. Não tinha a consciência de que tudo o que fazia com ele era pela última vez.

Quando chegou o dia da cirurgia, eu despertei no Hotel Novo Mundo, na praia do Flamengo e acidentalmente quebrei um copo. Uma bobagem. Mas senti naquele pequeno incidente um sinal da fragilidade da vida. Peguei o avião de volta para São Paulo. Fui direto para o hospital.

Encontrei minha mãe e minhas tias numa sala de espera, conversando animadamente. Seu Decio estava sendo operado. Logo a cirurgia estaria finalizada. Onde vamos almoçar? Eu senti um súbito mal estar. Copos se quebram. A porta abriu. O cirurgião apareceu pálido, trêmulo. Ocorreu um raríssimo acidente de coagulação. Estamos fazendo o possível para reverter a situação. Mas está difícil.

Em choque, minha família foi para o quarto do paciente esperar notícias. Dois andares abaixo eu fiquei na porta da UTI. Por algumas horas eu fiquei lá, olhando meu pai pela janela de vidro. Não rezei, pois não tinha a fé que tenho hoje. Apenas xingava mentalmente o meu herói: “Fica, velho desgraçado! Fica! Você não pode me abandonar!

Horas depois um enfermeiro saiu, e de passagem me avisou: “faleceu”. Com o mesmo tom que diria “são duas e meia”. Ou “tá chovendo lá fora”. Eu então me arrastei dois andares acima pela escadaria, como se subisse o Everest. Tinha que contar para minha irmã e minha mãe que seu Decio tinha ido embora aos 61 anos um pouquinho antes de se aposentar e começar a aproveitar melhor a vida. E mais: eu, que tinha 37 anos, com um filho de 5, agora teria que cuidar também da minha mãe.

Meu luto? Chorei até esgotar o estoque de lágrimas no enterro. Mas fui para casa e escrevi textos cômicos para o programa Milk-Shake. (Ficaram bons!). Meses depois fiz minha primeira grande viagem internacional para New York e me diverti aos montes.

Meu luto? Dez anos de depressão, confusão emocional, isolamento social, perda de referência, sofrimento com o sofrimento da minha mãe, e a consciência de que a vida continuava como desde os tempos das cavernas: de nascimento em nascimento, de morte em morte. Seu Decio teve que partir para que eu amadurecesse de vez. E virasse um pai de verdade para o Icaro, meu filho.

O choro ficou engasgado na minha garganta por um tempo. Até o dia em que eu compreendi a letra de uma de suas músicas favoritas: “Sonny Boy”, com Al Jolson, que ouvimos lado a lado no sofá um milhão de vezes, num dos discos 78 rotações que guardo até hoje:

Suba no meu colo, filhinho. Você não tem como saber o quanto significa para mim. Quando o céu está cinzento, eu não me importo, pois você o torna azul, meu filho. Os amigos podem me abandonar, deixem que me abandonem, pois eu tenho você, meu filho”.