Esse projeto é um convite para quebrar o tabu. Um canal de inspiração e de informação para quem vive o luto e para quem deseja ajudar

Doula de um trabalho de morte

Natalia Garcia, do Cidade para Pessoas, conta como ajudou sua mãe a falecer e o efeito dessa experiência sobre o seu luto

arquivo pessoa

Era tarde e as luzes já estavam apagadas. Meus olhos começavam a se acostumar à penumbra e identificavam os contornos dos móveis daquele quarto de hospital. Eu sabia que seria difícil conseguir dormir. Não só por causa da dureza da cama de acompanhante e da abordagem dos enfermeiros que abriam a porta de maneira ruidosa e ascendiam as luzes várias vezes no meio da madrugada. Me impedia de relaxar o parecer da médica dito com calculada frieza – dificilmente minha mãe viveria até a manhã seguinte.

Revirando de um lado para o outro em busca de uma posição confortável, senti que a maçaneta do quarto se movia lentamente e alguém entrava com delicadeza. Antes de ver seu rosto, já sabia que era o enfermeiro dono de um semblante que parecia mais de anjo que de humano. Ele mexeu nos pulsos da minha mãe, passou algum tempo olhando para ela, depois se voltou para mim e minha irmã.

– Preciso falar com vocês duas lá fora – disse ele lentamente, reproduzindo suas palavras em gestos com as mãos. Saímos atrás dele, mudas.

– Pode parecer que não, mas nesse estágio ela está ouvindo tudo o que falamos, mesmo enquanto dorme, por isso vim ter essa conversa aqui fora com vocês – esclareceu ele. Permanecemos mudas.

– A partir de agora, eu vou entrar mais vezes no quarto de vocês, vamos checando a evolução dela pouco a pouco, e as coisas vão acontecer naturalmente – disse ele, depois ficando alguns segundos em silêncio para que conseguíssemos absorver suas palavras – não se assustem com o que acontecer daqui para frente, ela está indo do jeito mais digno possível e eu estarei junto com vocês acompanhando cada etapa do processo.

Apesar de não conseguir dizer nada, senti uma profunda gratidão por estar sendo guiada com tanta delicadeza a acompanhar o falecimento da minha mãe. Voltamos os três ao quarto, chegamos perto da cama e ela abriu os olhos.

– Tudo bem, dona Sonia? – perguntou o enfermeiro-anjo.

– Tudo sim – disse ela, sorrindo. Passaram algum tempo se olhando, com carinho, até que ele deixou o quarto.

O processo que culminou naquela noite havia começado três anos antes. Em dezembro de 2011, com fortes dores no abdome, minha mãe foi a um hospital. Ela sabia que tinha pedras na vesícula mas vinha adiando a decisão de removê-las. Entrou numa cirurgia de emergência. E, antes que acordasse, fomos conversar com o médico que a operou.

– Qual é seu parentesco com a Sonia? – perguntou ele.

– Somos filhas dela – disse eu ao lado da minha irmã.

– E quantos anos vocês tem? – indagou ele, jogando no ar o alerta de que uma notícia desagradável estava por vir.

– Temos 29 e 26 – respondemos.

Ele então começou a nos explicar o que tinha visto durante a cirurgia. Eu via seus lábios se moverem, mas tinha que me esforçar um bocado para compreender o significado de suas palavras. Tumor, estágio avançado, formato de couve-flor, terminal. Ele estava nos dizendo que nossa mãe ia morrer de câncer. E estimou que ela teria mais seis meses de vida.

O enfermeiro-anjo voltou ao quarto cerca de uma hora depois. Sempre delicado, trocou palavras com a minha mãe em sussurros, depois saiu. Eu estava deitada sobre um colchão tão estreito que precisava ter cuidado para não cair ao me virar. Ao meu lado, sobre uma cadeira reclinada, minha irmã tinha a respiração pesada de quem está em um sono profundo. Havíamos decidido interromper nosso revezamento para passarmos a noite juntas no hospital. Nenhuma de nós teve coragem de deixar a outra sozinha para lidar com a morte, ao mesmo tempo que as duas sentiram a necessidade de estar ali presentes.

Aquela internação ja durava quase três meses, minha mãe ficava cada dia um pouquinho mais magra e menos viva. Junto com a dor de vê-la partir, tinha muita coisa bonita aparecendo. Era como se cada pouquinho dela que ia embora levasse aspectos negativos de sua personalidade e o que ia sobrando era o seu melhor. O sorriso, o bom humor, o carinho com todos, os comentários sobre o fisioterapeuta gato, as imitações de velhinha d’A Praça É Nossa com a bengala.

Uma porção de coisas ia acontecendo dentro de mim também. Eu não estava mais em guerra contra o câncer, lutando para salvar a minha mãe. Estava em paz com sua partida e dando meu melhor para que ela tivesse o conforto e o amor de que precisava para morrer. Foi durante aqueles meses que consegui entender a energia do serviço. Eu estava a serviço da minha mãe para o que fosse: suco de laranja, massagem nos pés, passeio de cadeira de rodas para ventilar as ideias, ajuda para levantar e ir ao banheiro de madrugada. O serviço é um abandono do controle para simplesmente estar à disposição do que as circunstâncias pedem, um estado de espírito em que é possível viver momentos deliciosos até numa rotina de hospital.

Felizmente, o médico que operou a vesícula da minha mãe estava errado sobre sua expectativa de vida – foi bem mais do que seis meses. E não errou só nisso. Um ano depois da cirurgia, o tratamento de quimioterapia havia deixado o tumor relativamente sob controle. Então, eu parti para uma longa viagem, que tinha como um dos pontos de parada Oaxaca, no interior do México. Lá fui ver o Dia de Muertos, uma celebração da morte que acontece nos cemitérios com famílias inteiras comendo, bebendo e cantando em torno das lápides dos seus ancestrais. Foi a primeira vez que a ideia de festejar a morte me ocorreu.

Perguntamos a uma mulher com pintura de caveira no rosto:

– Então, hoje é um dia feliz e triste?

– Se faz muito tempo que a pessoa se foi, sim – respondeu ela – mas se já faz muito tempo é apenas um dia feliz.

Perguntei-me se, depois que minha mãe morresse, chegaria o dia em que sua lembrança me faria apenas feliz.

Depois da segunda visita do enfermeiro-anjo, ao contrário das minhas expectativas, eu adormeci. Acordei com a luz da manhã entrando pelas frestas da persiana mal fechada. Minha irmã ainda dormia. Olhei para minha mãe, de olhos fechados, respirando muito devagar, e chorei em despedida. Pensei “é isso, ela não vai mais acordar”. Mas aquela era uma manhã decidida a me surpreender. Aos poucos, vi minha mãe abrir os olhos.

– Manga – disse ela.

– O quê? – perguntei, sem conseguir acreditar que ela ainda estava viva.

– Ainda tem manga aí? – ela disse novamente, acordando minha irmã.

Fomos cortar pedaços de manga e levamos até a cama, com uma colher. Minha mãe se ajeitou como pôde, agarrou a manga com as mãos e encheu a boca daquela fruta amarela e suculenta. Lambeu os dedos com um sorriso que nos transbordou de alegria. Ficamos ali, vivas, comendo manga e aproveitando o sol da manhã. Dentre as muitas palavras possíveis, escolhi chamar de milagre aquela manhã em que minha mãe não morreu.

Depois do almoço, fui até minha casa tomar um banho e trocar de roupa. Escolhi um vestido bonito, pintei os olhos e os lábios. Calcei meu melhor sapato, coloquei um colar com pingente de cerâmica, refiz a mala e voltei para o hospital.

– Como você está linda, filha – foi a última frase que ela me disse com plena consciência.

Um pouco antes da última internação da minha mãe, eu tinha outra viagem programada para o Uruguai. E, algumas semanas antes do meu vôo, ganhei um prêmio por uma reportagem que dava direito a uma passagem para Nova Iorque. O roteiro, então, havia ficado assim: São Paulo – Montevideo – Nova Iorque – São Paulo.

Se por um lado a viagem me deixava animada, por outro, eu estava preocupada com o estado da minha mãe. O tumor havia voltado a crescer e ela tomava doses cada vez maiores de morfina para suportar a dor, o que mexia muito com sua consciência – o limite entre estar dormindo e acordada ficava cada dia menos definido.

Uma tarde, eu preparava almoço na sua casa, e ela veio espiar a panela. Senti que a macarronada a deixou cheia de apetite e ela comentou sobre o parmesão que estava na mesa para ser ralado:

– Não é pra devorar esse queijo!

Sua fala me encheu de ternura. Fingi que ia comer um pedação e ela veio na minha direção fingindo que ia me pegar, como brincava quando eu era criança. Demos um longo abraço na cozinha, balançando de um lado para o outro, e senti o tempo parar. Era perceptível que estava chegando a hora de ela ir.

No fim daquela tarde, encontrei um álbum de fotos da minha infância e decidi levá-lo para casa. Antes de sair, porém, minha mãe quis ver as fotos junto comigo. Contou histórias sobre cada imagem. Eu já conhecia há muito tempo as fotos do meu aniversário de dois anos, mas só naquele dia soube que tinha sido ela quem preparou os enfeites de mesa com papel crepom. Deixei algumas lágrimas cairem, mas minha mãe, talvez por causa da morfina, não percebeu.

Alguns dias depois, ela precisou ser internada e ficou claro que dificilmente sairia do hospital. A viagem estava bem próxima, então eu precisava fazer uma escolha – ir ou ficar. Uma parte de mim queria viajar para longe, fugir daquela situação, me ausentar de toda aquela dor. Fui jantar com uma amiga que tinha perdido o pai um ano antes e ela me deu o seguinte conselho:

– Você vai se arrepender pelo resto da vida se não ficar, é importante passar por isso, ver o caixão fechar…

– Não sei se tenho coragem – respondi.

– Confia, você vai saber o que fazer – ela respondeu.

Sou eternamente grata a essa amiga por ter decidido ficar.

Depois da manga, minha mãe dormiu e acordou várias vezes, muito fraca. Quando chegou a noite, torci para que o enfermeiro-anjo assumisse novamente o turno. Mas nem sinal dele. A enfermeira que assumiu veio ver minha mãe no quarto e desatou a chorar.

– Nossa, que difícil – soltou ela, e então saiu.

Nesse momento, minha irmã, que felizmente tem o melhor senso de humor do mundo, comentou:

– Que barra pra ela, né…? – eu, ela e minha mãe caímos na gargalhada.

Como respirar estava ficando mais difícil a cada hora, trouxeram alguns equipamentos para auxiliar minha mãe. Talvez fosse o barulho ou a sensação claustrofóbica causada por aquela máscara de respiração, mas ela começou a ficar progressivamente nervosa e ansiosa. Falava de dores, dizia que precisava de ajuda. E então ela disse:

– Me ajuda, minha mãezinha, me ajuda.

Em toda a minha vida eu nunca a tinha ouvido assim de sua mãe, Natália, que morreu quando ela tinha um ano. Tive o insight de pensar que ela escolheu para mim o nome de sua própria mãe e, naquele momento, eu estava cuidando dela como se fosse minha filha.

A ansiedade só aumentava, então liguei para meu pai, que foi nos encontrar, e chamamos a enfermeira para ligar a sedação, na intenção de que ela parasse de sofrer. Mas quando o medicamento foi aplicado, minha mãe piorou. Gritou de dor apontando a própria cabeça, parecia estar se segurando no corpo sem querer largar a vida. Fui falar com a enfermeira fora do quarto, mas vi que ela era tão inexperiente quanto eu naquela situação. Sua recomendação foi que tentássemos acalmar minha mãe.

Eu e minha irmã começamos então a nos revezar em volta da cama tentando tirar nossa mãe daquela transe nervosa. Ela começou a relatar outras pessoas no quarto e ficava nos perguntando quem eram – não sei se eram alucinações ou seres de outro plano. Nada do que fazíamos ou falávamos parecia ter um efeito calmante sobre ela. Daí lembrei do enfermeiro-anjo dizendo para não nos assustarmos e afirmando que aquele era o jeito mais digno de morrer. Foi quando minha irmã sugeriu que a gente rezasse. Juntas, fizemos a oração do Pai Nosso, repetidas vezes como se fosse um mantra.

Aí minha mãe foi começando a reduzir o ritmo, ficou mais calma, pediu ajuda para sentar, tirou os aparelhos respiratórios e começou a conversar conosco como se estivesse ótima. Se despediu do meu pai. Deu recomendações para que fizéssemos um enterro “sem chororô”, nos aconselhou a procurarmos pelo amor verdadeiro em nossas vidas e disse que a partir de agora ia se dedicar a amar e ser amada. Ficamos ouvindo, em silêncio, concordando com a cabeça. A última gota de vida da minha mãe era puro amor.

Em seguida a ansiedade começou a voltar, mas a força de seu corpo foi se esvaindo. A sensação era a de que a vida, a alma, o ser – chame como quiser – largou o corpo, que foi progressivamente desligando. Esse corpo começou, mecanicamente, a relatar senhas de banco, falando como se fosse uma máquina. Os sons foram reduzindo até cessarem. A respiração também foi ficando cada vez mais curta e espaçada, como um peixe fora d’água.

Era alta madrugada e caímos no sono, exaustas. Acordei com meu celular tocando, umas nove da manhã. Era uma amiga que tinha ido ao hospital me visitar. Olhei para o lado, minha mãe ainda respirava. Desci para encontrar minha amiga, meio em choque. Ela me levava de presente o livro Bhagavad-Guita, um épico indiano milenar que conta a história de como o buscador espiritual Arjuna recebe da deidade Krishna a iluminação para descobrir seu caminho. Essa amiga me acalmou quando relatei como havia sido minha noite, disse que tudo aquilo era uma limpeza pela qual minha mãe precisava passar antes de morrer. Escolhi acreditar nela e ficamos ali sentindo o sol nos aquecer. Meu celular tocou novamente e era minha irmã me pedindo para voltar ao quarto.

Cheguei no corredor e a encontrei com minha avó e meu pai chorando.

– Sua mãe faleceu – disse meu pai. Abracei minha família, com dor e alívio.

Quando entrei no quarto, o que vi no corpo da minha mãe foi uma expressão de profunda serenidade e paz. Gosto de pensar que essa foi a última coisa que aquele corpo sentiu. A luz logo acima da cama começou a piscar, algo que nunca tinha feito antes – não sei se foi um curto-circuito ou um fenômeno sobrenatural.

Foram muitos os rituais de despedida. Começaram com velório, cerimômia de cremação, missa de sétimo dia. Depois, fomos eu e meus irmãos para a Chapada dos Veadeiros, onde fizemos trilhas e passeamos de balão para celebrar a vida que ela nos deu. No seu aniversário, entregamos suas cinzas à sua praia favorita. Arrumamos suas coisas, roupas, papéis. Encerramos a operação de sua empresa. Cada um desses passos era nossa maneira de honrar nossa mãe.

Meu luto segue presente, mesmo três anos após sua partida. Descobri que luto tem a mesma raiz etimológica de lodo, a lama de onde brota a flor de lótus, um composto que é ao mesmo tempo putrefação e pureza, morte e nascimento. No luto, coexistem a dor e a fertilidade. Por um lado, a pessoa que me trouxe ao mundo e que era uma espécie de filtro através do qual eu percebia a realidade, tinha deixado de estar presente. Por outro, essa ausência me oferecia a vertiginosa liberdade de ser o que eu quisesse, sem nenhum limite. A experiência de acompanhar o falecimento da minha mãe me ajudou a enxergar esse aspecto libertário do luto.

Desenvolvi a teoria de que, assim como há um trabalho de parto para um bebê vir ao mundo, também entramos em trabalho de morte na hora de deixar o corpo. E me senti como uma doula, aquela assistente do parto que acompanha e apoia a mulher, mas em vez de ajudar um nascimento, eu estava facilitando uma morte. Essa ideia fez mais sentido ainda quando, alguns meses depois, li essa frase: a morte é o contrário do nascimento, a vida não tem contrários.

Hoje, quando finalmente tomei coragem para me sentar e escrever esse texto, tomei um susto. Enquanto digitava, um livro caiu de uma prateleira alta sobre minha mesa, fazendo um enorme estrondo. Era justamente o Bhagavad-Guita, presente daquela amiga que me visitou na manhã em que minha mãe morreu. Abri o livro aleatoriamente e dei com esse trecho:

“Assim como a alma encarnada passa seguidamente, neste corpo, da infância à juventude e à velhice, da mesma maneira, a alma passa para um outro corpo – material ou espiritual – após a morte. Uma pessoa sóbria não se confunde com tal mudança”.

Novamente, não sei se foi obra do acaso ou uma mensagem espiritual. Mas saber deixou de ser assim tão importante. Aprendi a aceitar (ainda que não consiga sempre) o que a realidade me oferece, mesmo sem conseguir compreendê-la totalmente. Mais um dos muitos presentes que recebi da minha mãe.

 

Natália Garcia é jornalista e hoje investiga como transformar nossas cidades em lugares melhores para viver. É fundadora do Cidades para Pessoas e co-curadora e mediadora do Brechas Urbanas  (Itaú Cultural).