Esse projeto é um convite para quebrar o tabu. Um canal de inspiração e de informação para quem vive o luto e para quem deseja ajudar

Como transformar tristeza em beleza

Em 2007, Cris Guerra perdeu o marido e ganhou o filho, Francisco. Muita gente acompanhou sua história no blog "Para Francisco", que virou um livro de mesmo nome e ganha agora edição de 10 anos. Nesta entrevista, Cris conta como enxerga sua história uma década depois: "O mais legal de voltar a ele (ao livro) foi justamente perceber o quanto o tempo nos reconstrói. O que o tempo faz com a gente, ou o que a gente permite que ele faça"
Gui e Cris e Francisco (na barriga)
Gui e Cris e Francisco (na barriga)

Cris Guerra é escritora e mãe do Francisco. Nela moram muitas palavras, que ela articula em textos e palestras e vídeos com muita sensibilidade e humor. Também as articula com profundidade no Whatsapp – a longa entrevista que o VFSOL publica a partir de hoje em capítulos foi feita assim, aos pedaços, em muitos áudios e micro textos. Cris fala do mesmo jeito que escreve (eu, que assino esse pequeno texto, posso atestar que em dez anos de amizade não teve uma conversa nossa que não tenha me provocado lágrimas e gargalhadas). Ela já publicou alguns livros e o primeiro deles, “Para Francisco” (editora Best Seller), acaba de ganhar uma nova edição comemorativa de 10 anos. Quer dizer, o livro não tem 10 anos, a história que ele guarda tem. Melhor deixar a Cris explicar: “A morte do Gui e o nascimento do Francisco é que tem 10 anos. O Gui morreu em janeiro de 2007 e o Francisco nasceu em março de 2007”. O luto da Cris pela perda do pai de seu filho, registrado nesse livro de memórias, está completando 10 anos. E eu quis saber dela…

Como foi a experiência de voltar, quase dez anos depois, aos textos escritos durante o luto pela morte do Gui?

Ao longo desses anos eu revisitei o livro algumas vezes e reencontrei coisas das quais eu não me lembrava. Foi interessante poder reviver certas memórias com um outro olhar ¬– um olhar de menos dor. O “Para Francisco” nasceu da necessidade de me expressar e também do desejo de guardar uma lembrança fresca. A gente se distancia das lembranças e eu sabia com muito clareza disso quando comecei a escrever. Minha mãe… Faz 23 anos que ela morreu e nesse tempo eu esqueci o que é ter mãe. A gente esquece porque desenvolve mecanismos de defesa – se não for assim não consegue aguentar. Reler o livro foi olhar para a minha história de novo e falar “nossa, foi desse jeito?!”. E foi me dar conta do quanto eu mudei. O mais legal de voltar a ele foi justamente perceber o quanto o tempo nos reconstrói. O que o tempo faz com a gente, ou o que a gente permite que ele faça.

Foi difícil se reconectar a essas memórias?

O processo de fazer essa versão atualizada coincidiu com uma relação nova, em que eu estava apaixonada de novo, feliz, amando. Nessa situação você olha para o passado de uma maneira menos apaixonada. Mesmo assim, escrever uma nova carta para o Gui foi muito difícil. Mas também foi muito legal… Eu escrevi num tom de amizade. O nosso distanciamento fez com que ficasse a essência da nossa relação, que é feita de humor, carinho, amizade e gratidão. O que fica depois da morte é a parte mais bonita do afeto.

Como foi voltar a amar depois da morte do Gui?

No auge da dor eu achava que nunca mais conseguiria amar alguém. Doce ilusão! Eu tenho uma capacidade de amar e de me apaixonar muito grande e acho que isso tem a ver com essa minha sede de vida. Eu não desisto fácil da vida e tive muita clareza disso já no instante da morte do Gui. Quando a minha avó materna ficou viúva – numa história parecida com a minha, porque ela estava grávida da minha mãe quando o meu avô morreu – ela nunca mais permitiu se apaixonar. Eu sempre achei aquilo tão duro! Eu soube muito rapidamente que não queria a mesma coisa para mim, assim como tive a noção rápida de que a minha história iria assustar os homens. Quem morre vira mito e eu sabia que através da minha escrita eu também estava colaborando para transformar o Gui num mito, ainda que no livro eu fale dos defeitos dele, da humanidade dele. Tinha em mim, ao escrever, uma vontade de dizer ele morreu mas ele não era santo, ele era normal, uma pessoa com sofrimentos, defeitos, crises de identidade.

Gui
Gui

Você acha que para os homens é difícil lidar com o peso dessa história?

Com certeza eles têm mais dificuldade do que eu (risos). Pode publicar isso aí com todas as letras porque discutir esse assunto me interessa. Meu último namorado me dizia “você fala demais dessa história, isso te entristece”. Para mim essa história hoje é um pacotinho – e ele é importante, claro – que fica ali guardado. Se eu vou revisitá-lo é porque tem o livro, e o livro vai virar filme e tem outros projetos ligados a ele. Querendo ou não, foram só dois anos de Gui. Dois anos intensos, mas dois anos. Tanta coisa veio depois… Acontece que esses dois anos ficaram materializados num livro – e eu precisava materializar para dar conta – e isso às vezes assusta quem chega. Sem falar que essa é uma história que gerou também um filho. São dez anos de Francisco, dois de Gui. Eu volto aos números para dizer que eu conheço muito melhor o Francisco do que conheci o Gui. O Francisco me traz um pouco do Gui, então tem uma poesia e também uma confusão nessa história. Mas o Francisco não me traz a minha relação com o Gui. São duas coisas diferentes.

A partir da sua experiência, você diria que o luto chega ao fim? E como saber que ele chegou ao fim?

Eu acho que o luto termina sim, pelo menos o luto saudável, bem vivido. O luto para mim é um processo de convalescência. Depois da cura, ele não volta. É claro que há períodos em que você pensa mais em quem partiu e fica mais triste. Por exemplo: esses dias eu andei lendo o roteiro do filme e chorei muito. É natural. O meu luto durou mais ou menos dois anos. Carrego comigo as cicatrizes dele, mas como as cicatrizes de uma cirurgia elas vão ficando menos visíveis à medida que o tempo passa. Eu acho que o luto passa quando você percebe que a pessoa morreu, mas você não. Perder alguém é morrer um pouco.

Você passou por diferentes lutos. Dá para compará-los?

Eu experimentei a morte repentina, que foi a do Gui, a morte anunciada, dos meus pais – minha mãe e meu pai morreram de câncer – e a morte oculta, que é a do aborto. Sofri dois abortos com menos de dois meses de gravidez e mesmo sem ter tido tempo de ouvir o coração desses bebês sonhei muito com eles. Eu os queria muito. O aborto dói demais por ser um luto não reconhecido, não permitido. A morte repentina te tira do prumo, é como passar por um acidente de carro e nascer de novo. Na morte anunciada o sofrimento da pessoa que vai definhando por causa de uma doença é tão grande que no momento da morte a gente sente mais é alívio… Só depois vem a saudade, e ela começa a aparecer quando as imagens do período da doença vão se apagando, o que demora muito. Sem dúvida minha morte mais difícil foi a do Gui porque também foi a morte do futuro. No luto do Gui eu sentia saudade de momentos que não vivi. O futuro teve de ser reprogramado.

Qual foi o pior momento dessa experiência?

O luto tem um vai e vem, né? É como uma montanha russa, quando parece que está melhorando vem uma descida de novo. Mas acho que o pior momento foi o primeiro mês, porque ali era só descida – um período assustador, desesperador, inacreditável. Eu passei pela negação da morte, pela negação do próprio bebê, eu falava “não quero isso”, “não mereço isso”, era uma dor que não passava. Eu era um zumbi. Criar sozinha um bebê pequeno sabendo que o pai dessa criança foi interrompido é muito desesperador. Tinha o medo de não dar conta sozinha… Olhar para todos os casais e ver que todos são completos e você é sozinha… O medo de que ninguém nunca mais se interesse por você… Eram muitas solidões e era uma exaustão não só física, mas de alma. Ao mesmo tempo tinha a maternidade. Um bebê demanda demais e traz tanta novidade, tem ali tanta vida pulsando… Eu pensava “será que eu vou dar conta de criar o Francisco com tanta dor dentro de mim?”. O desejo de me esvaziar dessa dor foi um dos principais motores para me fazer escrever. Eu precisava por tudo aquilo para fora.

Faz sentido perguntar qual foi o melhor momento dessa experiência de luto? Houve momentos bons?

É claro que sim! O melhor momento foi começar a escrever e a escrita jorrar de mim. Eu colocava o Francisco para dormir e escrevia compulsivamente. Quando eu conseguia fazer a minha dor se transformar num texto e esse texto chegava a outras pessoas e elas acessavam a minha emoção… Quando a empatia se estabelecia… Nossa, como era bom! Nesse momento nasceu uma nova mulher em mim, e foi maravilhoso. Nasceu alguém que estava gostando de escrever, nasceu um novo potencial, nasceu uma nova possibilidade e um lado meu que eu desconhecia. Eu falo desse momento com a boca cheia, cheia de alegria, porque foi muito, muito, mas muito maravilhoso. Conseguir falar da morte de uma maneira delicada e não melodramática, incluir o humor nessa conversa… Isso mudou tudo. Quando você coloca beleza na tristeza, ela se transforma. Foi tão maravilhoso poder reescrever a minha história. E poder dar ao Francisco o pai, através do poder das palavras. Eu me lembro que as pessoas falavam “você vai dar conta”. Mas eu não me contento com dar conta! A gente vem ao mundo para muito mais do que dar conta. O “Para Francisco” veio para que a vida ficasse melhor. Tem uma frase do Nietzsche que eu acho perfeita: “temos a arte para não morrer da verdade”.

Francisco e o livro que é para ele
Francisco e o livro que é para ele

Leia a segunda parte desta entrevista clicando aqui