Esse projeto é um convite para quebrar o tabu. Um canal de inspiração e de informação para quem vive o luto e para quem deseja ajudar

Eu tive que parir essa dor

A mineira Rafaella Biasi Callegari, 35 anos, perdeu o filho Miguel quando estava prestes à dar a luz, com 40 semanas de gestação. Como parte do processo de elaboração da própria dor, ela produziu, junto ao marido (e pai do Miguel), Fabrício Gimenes, 27 anos, o documentário O Segundo Sol (2015), que traz histórias reais de pessoas que passaram pela dolorosa experiência de perder um filho que não nasceu

Em depoimento dado a Laura Capanema

Foto da barriga com Miguel: 35 semanas, foto feita pelo pai, Fabricio Gimenes, na Praça do Papa, em Belo Horizonte

“Não apenas fala-se pouco sobre a morte gestacional e neonatal. Na verdade, sabe-se muito pouco e reflete-se quase nada. Além de toda a dor, sempre há junto uma sensação angustiante de estranheza. Como sentir a perda de alguém que nem nasceu? Como sentir saudade de algo que a gente nem viveu? É um paradoxo muito grande. Essa dúvida eterna é o que faz com que nós, mães de anjos, sofrêssemos ainda mais com o nosso processo de luto – é dureza essa história de materializar a existência de uma criança que nunca nem existiu (pelo menos perante a sociedade). É morte de um lado e vida do outro, é ter de lidar com as duas coisas coexistindo. Ninguém está preparado para isso. Ninguém.

Engravidei no começo de 2014 e sofri a perda em novembro do mesmo ano. Tive uma gravidez ótima, saudável, feliz, leve. Juro, sei bem como é viver uma gestação mais delicada, com mais medos e angústias, como foi a minha primeira (também sou mãe de Cecília, hoje com 14 anos), mas absolutamente este não havia sido o caso do Miguel.

Para mim ele nasceu de verdade. Eu o tive nos meus braços, apesar de ter sido uma única vez. Consigo ainda sentir o cheiro dele – acho que nunca vou me esquecer do cheiro do Miguel! Lembro-me muito bem de seus traços, vi que ele tinha exatamente a minha mão, o nariz do pai. Eu fiquei ali um tempo, olhando pra ele. O tempo parou, até. O doutor falou que foram uns 20 minutos, mas não me dei conta. Parecia muito mais.

Aconteceu na última consulta de pré-natal, em que eu já me encontrava em pré-trabalho de parto. E não bastava ter descoberto (quando eu menos esperava na vida) que o coração dele já não batia mais: eu ainda teria que passar pelo parto. Só consegui pensar na cesária, já que era a forma mais rápida de enfrentar aquilo. Mas aí os profissionais maravilhosos que estavam comigo começaram a abrir minha mente para o parto natural (o qual eu estava me preparando e desejando profundamente ao longo de toda a gestação) e a fazer o que deveria ser feito em todas as maternidades quando acontece algo parecido: o de dar aos pais enlutados tempo suficiente para que aconteça o processo de despedida.

Eu fiquei com muito medo, claro. Medo da dor da alma, da dor física, de morrer junto. Logo entendi que a dor do parto jamais seria maior que a dor que estava sentindo dentro de mim, e essa perspectiva foi importante. Era a história do meu filho e o desejo de sumir com essa história (que era o de sumir com essa dor), não era justo. Mas eu não sabia nada sobre esse processo. Não se encontra nem literatura sobre isso. Como as mulheres faziam antigamente para parir os filhos que já haviam morrido?

Foi um trabalho de parto induzido. No dia D das minhas 40 semanas, lá estava eu, levando 12 horas para gerar uma criança que não estava mais viva. Mas logo tive uma intuição muito forte de que aquilo iria me ajudar. Lembro de ter falado para a Renata, minha terapeuta, exatamente essas palavras: ‘Eu vou parir essa dor’.

Meses depois, eu e o Fabrício colocamos O Segundo Sol no ar. Já tínhamos alguma familiaridade com o universo audiovisual –  eu sou designer de formação e trabalhei anos com moda, ele, publicitário – mas nunca havíamos produzido um documentário na vida. Por que então fizemos um nesse momento? Sentia dentro de mim a necessidade vital de aprender com quem já tivesse passado por isso. Será que essa tragédia tão grande só tinha acontecido comigo? Eu queria me certificar de que não estava enlouquecendo. E aí fui para a internet procurar outras pessoas, muitos que também queriam dar voz às suas dores, nos ajudando no filme e trabalhando como voluntários. Ou seja: logo entendi que, sim, precisávamos falar sobre isso. Não era importante apenas para mim e o Fabrício. Era importante para muita gente.

Foto divulgação O Segundo Sol feita por @elizaguerra

O LUTO SEM RESPOSTA

Fui loucamente atrás de uma resposta médica, de uma forma de lidar com a concretude da coisa. Fiz uma bateria de exames, mas os médicos nunca souberam me explicar essa morte. Existe uma variável dentro das questões médicas e científicas que não há como responder, já que não há fatores acumulativos de provas. É uma dúvida que leva para dois caminhos – ou você toma como algo que te incita a angústia eterna, ou você toma como algo que te incita uma resposta, mesmo que a resposta venha como uma não-resposta. Foi importante entender que não ter resposta também é uma resposta.

Depois do parto, cheguei em casa puérpera como todas as mães que acabam de parir e tive que tomar um remédio para o leite não descer. Isso me matou profundamente, doeu demais estancar o leite (hoje penso que poderia ter feito diferente, deixado descer e doado). Depois eu comecei a escrever. O meu processo de luto engrenou, de fato, comigo escrevendo. Escrevia, escrevia, escrevia, todo dia escrevia um pouco. Sentia tudo, dormia e escutava o bebê chorando. Mas não havia nenhum bebê. Nesses primeiros 40 dias, foram 40 dias no deserto. Foi punk.

E como fazer para contar ao mundo que o bebê que todos esperavam mal chegou a nascer? Em tempos de rede sociais, era muita gente sabendo que eu estaria prestes a dar à luz. Então logo que chegamos em casa o Fabrício fez um texto para contar o ocorrido as pessoas que estavam acompanhando a nossa gestação. Isso foi extremamente importante, ter alguém para ficar ali na linha de frente da comunicação. Então, por bem, precisei falar muito pouco sobre a ausência do Miguel nesse começo.

(Muitas vezes quem faz esse papel é o pai da criança, só que esse pai também está enlutado, também está sofrendo, então também é importante que não seja exatamente o pai, mas um familiar mais próximo. Se a dor da mulher já é invisibilizada, a dor do homem é mais ainda).

Mas depois, não escapei. Claro que não foi todo mundo que leu no Facebook. As pessoas me encontravam na rua, e quem já tinha me visto grávida antes perguntava: ‘como está o bebê?’. Tinha vez que eu falava que, sim, estava tudo bem, obrigada. Isso acontecia porque eu não queria não ser mais a mãe dele. Sim, eu era mãe. Mãe de um anjo, mas mãe. Me sentia muito mal em não poder falar dele. Eu queria falar. Como as pessoas não sabem lidar, a gente também não sabe lidar com o fato das pessoas não saberem lidar.

Hoje eu entendo algo muito mais profundo do que isso – todos têm suas histórias e dores, dores essas que não são necessariamente as minhas. Essa é a parte da triste da minha história, mas não tem ninguém no mundo que não tem uma parte triste da própria história. Foi engraçado perceber que a gente não olha pra dentro com tanta profundidade quando estamos felizes, quando está dando tudo certo na vida. A dor tem essa natureza de fazer isso com a gente. E eu tinha bastante consciência disso durante do meu processo, dessa consciência expandida da dor. E isso é foda! Claro que eu daria tudo para ele estar comigo hoje, mas como eu não posso ter isso, preciso olhar para o que essa criança me deixou. E aí começa o legado, a construção dessa memória.

Falo que o parto do Miguel é o dia zero do nosso processo de luto – e, o que me faz ser muito grata é o fato de ter tido acompanhamento terapêutico desde então. E a terapeuta colocava isso em pauta, ela via em mim e no Fabrício essa voz, essa oportunidade de que deveríamos falar. A gente se sentiu exilado na nossa própria dor. Não sabíamos onde falar, as pessoas não chegavam perto para estender a mão, ficavam com vergonha de perguntar. Mãe que perde filho já é uma coisa tão assombrosa para a sociedade, mãe que perde um bebê de 9 meses, então…

O SEGUNDO SOL

O processo do documentário andou junto com o nosso processo de luto. Tivemos essa consciência muito abrangente, como se a gente começasse a enxergar lá na frente uma melhora, uma luzinha que apontasse para um caminho: precisávamos falar sobre isso, precisávamos mergulhar nessa história. Sabíamos (mesmo) que só íamos conseguir ‘superar’ assim. O mais simbólico é que a produção durou nove meses. Eu dei o meu depoimento no vídeo (que foi o último a ser gravado, pois antes eu não conseguia falar), exatamente nove meses depois. Foi como se eu dissesse: ‘tá na hora de parir de novo’.

O Segundo Sol também foi a nossa tentativa de não nos isolarmos nas nossas dores individuais. Ali tinha um monte de dor junta e misturada: havia um processo individual meu, um processo individual do Fabrício, um processo do casal, uma diferença de processos naturais da mulher e do homem, da mãe e do pai. Também teve o luto da irmã, o luto dos avós que não eram mais avós, a culpa que eu sentia por não dar atenção suficiente para a outra filha pois só pensava no filho que havia perdido. Mas com a terapia fui entender que haviam questões minhas e outras dores se misturando com aquela. Entendi então que existe a dor e existe o sofrimento, mas que são coisas diferentes. A dor não passa, mas o descolamento dela, sim. E separar o joio do trigo é vital – compreender até onde é dor, até onde é sofrimento.

E minha maior lição de vida foi essa: acho importante nós sermos generosos com a gente. Se amar mesmo o suficiente para conseguir se acolher. Um auto amor que não nasce da noite para o dia, que é também um processo (e a perda tem isso de fazer com que a gente volte para si). Caiu uma ficha muito grande na minha cabeça sobre o quanto é libertador ser eu mesma para conseguir viver a vida mais íntegra e genuína. Depois que passou o período mais critico, sorrir pareceu muito mais genuíno. Me descobri uma pessoa alegre para além de qualquer coisa.

Hoje já fazem três anos e nós sabemos que não existe uma superação. Inclusive, O Segundo Sol nunca foi sobre superação, mas sobre caminhada e elaboração. Sobre um processo infinito, repleto de desdobramentos. Foi porque o Miguel existiu que O Segundo Sol pode existir. O documentário foi um sentido para ausência desse filho.

A dor não passa, mas o processo, sim. O luto acaba. Cada um tem seu tempo, mas é um processo que tem a sua finalização à medida que pode-se abrir pra ela. O desapego do luto também é importante, a gente se acostuma com a dor, mas temos que saber desapegar – se não seremos para sempre enlutados. Eu sou a mãe da Miguel e eu também sou uma mãe que perdeu um filho, mas nada disso me define como pessoa. Eu sou uma mistura de todas essas coisas. E o processo de autoconhecimento é pra sempre, pois vai continuar chegando a notícia ruim, assim como a notícia boa. Não dá pra parar. A vida precisa seguir, de dentro para fora, de fora para dentro.”

 

Veja o documentário completo aqui: