Esse projeto é um convite para quebrar o tabu. Um canal de inspiração e de informação para quem vive o luto e para quem deseja ajudar

O que fica para o sobrevivente do suicídio de alguém amado

Em um novo e corajoso relato, a psicóloga mineira Luciana Rocha fala sobre a vida depois da perda do marido e de como a cobrança pela retomada e o julgamento das pessoas podem tornar ainda mais difícil o processo desse luto particularmente doloroso

Em uma entrevista concedida ao nosso site no final do ano passado a psicóloga mineira Luciana Rocha falou sobre a morte do marido, que se suicidou há três anos. O que ela nos disse impactou e ajudou tantas pessoas que pedimos que fizesse outro depoimento, desta vez para contar sua experiência sobre a vida que segue depois. Hoje uma especialista no atendimento a enlutados, Luciana relata aqui como é possível lidar com as particularidades desse luto que envolve, além da tristeza profunda, a dor do sobrevivente que muitas vezes é acusado de não ter previsto e evitado a morte.

A montanha-russa em que vive o sobrevivente do suicídio

Todo luto é difícil. É singular, desconhecido e sem receitas prontas do que se deve fazer ou não. O que foi bom e é para mim pode não ser bom para você. Então, a única forma de superarmos o luto é passando por ele, por mais doloroso que seja. A angústia e dor no peito chegam a ser viscerais. Dói.
Nos dias turbulentos de hoje, recolher-se para a dor pode ser uma missão quase impossível. A cobrança para se retomar a vida num curto espaço de tempo é alta. Retomar a vida? Mas isso é possível?

Aquela vida que eu tinha antes de perder o meu marido não voltará nunca mais. E ao mesmo tempo, perguntas e sugestões não param de chegar até você: “Quando você volta pro trabalho? Você precisa sair, hein?… Não pode se entregar… A vida continua!”

É necessário prazo para entendermos que nada mais será como antes. Que não adianta tentarmos manter a mesma rotina, os mesmos gostos, os mesmos hobbies, porque não somos e nunca mais seremos os mesmos. Essa cicatriz, agora, faz parte da nossa história. Vamos precisar aprender a viver com ela e teremos que nos reconhecer nesta nova realidade desconhecida.
Perder alguém por suicídio mexe lá no fundo. Remexe em tudo aquilo que foi vivido e pensado por nós até o dia da perda. Nunca imaginamos que é algo que possa acontecer conosco, ainda mais por se tratar de um enorme tabu, e consequentemente, sabermos quase nada sobre o assunto. E o pouco que sabemos não é nada animador.

Quando perdemos alguém por suicídio, além de termos de lidar com a dor da perda, somos obrigados a nos depararmos com mil questionamentos e julgamentos de terceiros. Perguntas do tipo: “Mas você não notou nada? Não percebeu que ele estava deprimido? Ele não deu nenhum sinal? Ele nunca falou com você que pensava em se matar?”
As pessoas não fazem por mal, mas como elas não dão conta de falar sobre a morte, vivenciar algo assim tão forte as deixa tão vulneráveis e frágeis que, ou negam o que está acontecendo, ou tentam achar a qualquer custo uma resposta para o ocorrido. Não compreendem o tanto que estas perguntas machucam.

É duro, muito duro… O que queremos nesta hora são pessoas amigas e a família do nosso lado. Mesmo que em silêncio, mas ali conosco, demonstrando que não estamos sozinhos.
As famílias que tem ou tiveram algum suicida são vistas, pela grande maioria, como anormais. Como se nós tivéssemos algum problema muito pior ou mais sério do que as demais, o que não é verdade. Somos pessoas absolutamente comuns. E não é o fato de termos perdido alguém por suicídio que nos faz diferentes.
Por outro lado, as pessoas mais próximas da gente se veem diante de um novo paradigma. Elas percebem que as coisas não podem ser da forma como pensavam antes, uma vez que aquela pessoa querida que se matou não se enquadra nos moldes ditados pelo tabu. Que aquela família com que convivem não possui nenhuma característica que a defina como desequilibrada ou anormal.
A minha, por exemplo, sempre foi muito amorosa, unida, de muitos amigos e vida social bastante intensa. Tanto é que no enterro do Marden não havia espaço suficiente para tantas pessoas que queriam prestar suas últimas homenagens a ele e me darem um abraço de conforto.
É claro que os questionamentos eram inúmeros, ninguém compreendia como uma pessoa tão amável, gentil, aparentemente muito alegre, com uma esposa que o amava e dois filhos pequenos havia dado fim à própria vida.

As pessoas não sabiam, assim como eu na época, que o suicídio havia sido consequência de um processo depressivo aliado a um transtorno bipolar de personalidade. Naquele tempo eu não tinha acesso a nenhuma informação que me esclarecesse um pouco do que levava uma pessoa a se matar: uma ou mais doenças psiquiátricas.
Hoje, de posse das informações que possuo e depois de estudar muito sobre o assunto, identifico em meu marido vários traços que o classificam pertencente ao grupo de risco para suicídio. Mas não me culpo. Na época eu não tinha tal conhecimento, até mesmo porque pouco se fala sobre o assunto, o que dificulta ainda mais esta percepção. Como notar algo que sabemos quase nada sobre? Praticamente impossível.
Além disso, há vários casos onde a pessoa vive sua vida quase que absolutamente normal, cumprindo suas obrigações diárias, sem deixar de fazer nada que costumava fazer, mesmo que por dentro esteja sentindo uma dor insuportável. Nestas situações ainda é mais complicado identificarmos os sinais.

O suicida não quer morrer. Ele está doente. Sua percepção de vida está completamente alterada. Ele não consegue enxergar nenhuma solução para o menor problema que o aflige. Nada que você o diga irá animá-lo. Ele precisa de acompanhamento psicológico e psiquiátrico, com uso de psicofármacos. Em alguns casos a internação é necessária até que a pessoa saia da fase crítica.
O sobrevivente do suicídio vive numa montanha-russa. Crescer através dessa vivência pode nos tornar pessoas mais inteiras, autênticas e fiéis a nós mesmas. É uma grande oportunidade para redefinirmos prioridades, escolhermos melhor nossas companhias e focarmos no que realmente interessa. Vivermos no presente e sermos felizes.
Mas é inevitável que no meio dessa nova trajetória, por melhor que a gente esteja se saindo, de repente, a gente se sinta como se despencando de um barranco, com um vazio e dor enormes no peito, sem saber como e quando isso irá passar.
Mas o bom é que passa… Ah, sim, como passa…. E assim vamos aprendendo a viver e a lidar com esses sentimentos que só quem sofreu uma grande perda pode entender.