Esse projeto é um convite para quebrar o tabu. Um canal de inspiração e de informação para quem vive o luto e para quem deseja ajudar

O pior dia de todos

Desde muito cedo, Daniela Kopsch percebeu que escrever tinha algo de mágico, capaz de transformar as coisas. Em 2011, a jornalista cobriu o Massacre de Realengo e oito anos depois traz para a ficção meninas que ela conheceu e não deseja que sejam esquecidas

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O pior dia de todos é um livro sobre mortes e vidas, lutos e recomeços, falta e desejo. Natalia e Malu são adolescentes, primas, irmãs, colegas de sala e de quarto, inseparáveis. Levam uma vida mais ou menos comum, com os desafios típicos da idade, do gênero e da realidade das famílias de classes populares, até que um homem chega atirando na escola onde estudam e mata 12 estudantes, a maioria meninas.

A autora, a jornalista Daniela Kopsch, cobriu o Massacre de Realengo em 2011 e na época buscou ir além da cena da tragédia e do perfil do agressor para se aproximar das vítimas. Oito anos depois, faz sua estreia na ficção com um romance que tem como o pior dia de todos aquele episódio que chocou o país e atropelou tantas vidas. As protagonistas têm um pouco de cada menina que Daniela conheceu enquanto repórter, de cada morador de periferia que perde seus parentes e amigos para a violência, e também um pouco de mim, de você, de todos nós que sabemos como pode ser trágico viver sem quem amamos por perto.

“Definitivamente, ele não sabia que perder a pessoa amada não era apenas perder a pessoa amada, era também perder a si mesma. Tudo o que eu sentia era que não havia passado um dia sequer desde 7 de abril. Eu me perdi lá e não conseguia mais me reencontrar.”

 

Conversei com a autora antes e depois de ler seu livro. Seguem alguns trechos do nosso papo:

Por que escrever esse livro? Como foi escrever esse livro?

Eu sabia que escreveria sobre o que vi em Realengo. Um pouco porque senti que aquelas personagens não estavam sendo representadas. Quando acontece uma tragédia desse tipo, a atenção sempre se volta para os assassinos – o que é um problema porque coloca o status de celebridade justamente em quem não deve. Já em 2011 minha reportagem teve foco nas meninas sobreviventes e ter conhecido cada uma delas me fez pensar em outras meninas que conheci, em outras histórias. Percebi que a nossa experiência é cercada de violência e risco desde a infância, principalmente quando se é menina no Brasil. E foi assim que essa narrativa se transformou nessa história, que fala de muitas coisas, mas fala principalmente sobre duas meninas que estão crescendo e descobrindo a vida como ela é: essa realidade tão particular e ao mesmo tempo universal que é crescer menina em um mundo de sonhos e limitações. Comecei a escrever o livro vários anos depois de ter conhecido as meninas de Realengo. Mas depois que eu comecei, foi um processo rápido, como se durante todo esse tempo eu estivesse elaborando o tema de alguma forma inconsciente, faltando só colocar no papel. O trabalho de escrever o romance me mostrou como somos capazes de criar coisas no escuro, sem saber, desenvolvendo tudo nos mínimos detalhes e só descobrindo mais tarde, quando a ideia aparece quase pronta.

 

Você cobriu o Massacre de Realengo em 2011 e escreveu uma ficção baseada nessa vivência. Quais reflexões sobre a morte e o luto você elaborou após as duas experiências, da cobertura da tragédia e da criação literária?

O tema do luto sempre me chamou atenção porque a morte é essa força da natureza capaz de abalar nosso mundo e não deixar nada de pé. Como continuar depois de uma coisa dessas? Essa é a pergunta de quem sobrevive a uma tragédia como o Massacre de Realengo mas também de quem vive uma tragédia pessoal, uma perda importante. Catar os cacos do chão e ir levantando novamente as paredes, tijolo por tijolo, é provavelmente o trabalho mais difícil que alguém pode empreender na vida – considerando que todos nós passamos ou vamos passar por isso um dia. Lidar com isso através da ficção é uma maneira de se colocar dentro da experiência de outra pessoa e se confrontar com a própria, com algo que já aconteceu ou que tememos que aconteça. Os romances tem essa característica poderosíssima. “Acredite na cura pela leitura”, diz um professor para Malu, uma das protagonistas. Essa personagem é reduzida a nada aos 14 anos e depois aprende a se construir de novo, ela encontra as ferramentas e, no caso dela, a leitura e a escrita tem papel fundamental. Eu acredito que todos nós somos capazes de encontrar nossas ferramentas para a cura – e a literatura pode ser uma delas.

 

Suas personagens são meninas. Há algo do feminino na maneira de lidar com a morte e o luto? 

Sim. As mulheres ao longo da história se especializaram na arte de se levantar depois de serem derrubadas uma, duas, muitas vezes. Temos o nosso próprio modo de sofrer, cada uma ao seu tempo, mas trazemos gravados na memória do corpo essa resiliência ancestral. Malu e Natália vieram de uma linhagem de mulheres que passaram por todo tipo de coisa e podemos intuir isso na história das mães e da avó. Mesmo que não tenhamos consciência disso, nós carregamos essa ordem para sobreviver – e sobrevivemos. No Brasil, o número de suicídio é quatro vezes maior entre os homens do que entre as mulheres, segundo dados do Ministério da Saúde. É um número que sinaliza uma diferença importante na maneira como homens e mulheres lidam com o sofrimento – e mostra que os homens parecem ter mais dificuldade para encontrar as ferramentas de que falamos. Possivelmente porque nossa cultura impede que meninos ouçam e expressem seus sentimentos, especialmente a tristeza. E a tristeza é uma companhia difícil, ela quer ser ouvida, gosta de atenção – e não costuma ir embora enquanto não consegue.

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