Esse projeto é um convite para quebrar o tabu. Um canal de inspiração e de informação para quem vive o luto e para quem deseja ajudar

Será que podemos agradecer a morte de alguém que amamos tanto?

Ao perder meu pai, eu encontrei a mim mesma. A correria da vida nos desloca do que realmente importa, enquanto a vivência da morte nos permite presenciar mudanças poderosas de foco para enxergar o melhor da vida

 

Começo este texto com uma pergunta aparentemente forte para o tema. Como podemos pensar na possibilidade de agradecer por uma tristeza tão grande?

Sim, difícil pensar em gratidão diante da morte. Mas eu pensei, neguei, resisti e hoje entendo o que meu coração estava querendo me dizer.

Hoje, 10 anos da morte de meu pai e 4 anos respondendo a mais de 3.000 emails em nosso confessionário, gostaria de compartilhar um dos aprendizados mais bonitos que tiro de tanta dor: é possível reinventar a vida (mensagem que virou um dos nossos cartões)

O primeiro aprendizado que tive ao deparar com meu processo de luto e que depois se confirmou em nossos estudos sobre o tema, é que na dor máxima da vida encontramos a forma mais pura de expressão do amor.

Foi assim na despedida de meu pai e também em cada um dos 3.000 emails que li. Nosso amor desperta, cresce e transcende nos momentos de despedida.

Mas não é sobre o amor que quero falar e sim sobre como podemos fazer deste sentimento algo que nos impulsione a uma transformação maior.

Quando as pessoas me perguntam como consigo trabalhar com este tema e ler diariamente histórias tão tristes eu respondo: sou privilegiada. Talvez você esteja com a mesma expressão que enxergo quando digo isso: ela só pode ser maluca!

No início, eu também achei que não daria conta e que seria muito difícil eu conseguir não ficar fragilizada e contaminada com as histórias. Muitas vezes eu fechei o computador com água nos olhos e coração partido com a dor de uma mãe, filho, marido, sogra…

Ao longo do tempo, a leitura foi ficando mais fácil, menos pesada, apesar de triste. E não era porque estava me acostumando. Impossível nos blindarmos contra relatos carregados de dor. O que aconteceu foi minha mudança de foco na leitura. Comecei a ficar atenta ao quanto cada uma das pessoas que partiram deixavam de aprendizados, memórias e algo que valesse a pena ser lembrado e eternizado. Como juntaram pessoas, romperam barreiras e proporcionaram importantes reviravoltas na vida de seus familiares.

Esta explosão de mensagens fez com que eu revalidasse uma promessa que fiz à beira do caixão do meu pai: de que eu iria fazer valer a pena sua morte tão precoce, transformando sua ausência em presença através do meu crescimento pessoal. Como se me unisse àquela dor como um amuleto de transformação.

Este processo não é simples e nem tão claro enquanto estamos vivendo os momentos cruciais do luto. Por muito tempo nos anestesiamos e só enxergamos um buraco preto sem fim. Mas mesmo dentro dele recebemos alguns sinais que podem deslocar nosso olhar do fundo preto para a luz do sol.

Li muitos relatos sobre promessas, mudanças, ressignificação de reais problemas, transformações pessoais e familiares. Aprendi que muitas pessoas usaram desses pequenos sinais para conseguir enxergar algum caminho dentro da escuridão em busca de conforto.

Foi assim em minha história pessoal e também na de muitas outras, através das lindas mensagens que li.

Mas porque alguns de nós consegue olhar para o céu e buscar uma saída enquanto outros só enxergam o fundo? O que nos diferencia?

Antes que uma ideia de resposta lhe ocorra, não é a importância da perda. Não existe hierarquia da dor. Li relatos maravilhosos de mães que perderam filhos de formas abruptas e outros desesperados de netos que perderam avós de morte natural com 90 anos. Portanto, a dor não tem idade, sexo, grau de proximidade. Cada um carrega a sua e da forma que pode e consegue. No luto não tem certo nem errado.

Eu não me atrevo a dar esta resposta. Por não sermos formadas na área de psicologia do luto respeitamos muito o espaço da teoria nos colocando apenas como facilitadoras da troca de experiência e informação. E é deste espaço de escuta que posso dizer que nos tornamos especialistas em compreender a pureza e intensidade das relações. É nelas que sinto estar o segredo entre a não superação de uma perda e a transformação em algo que valha à pena sermos gratos.

Volto então à minha pergunta: será que podemos agradecer a morte de alguém que amamos tanto?

Com a perda do meu pai eu aprendi que havia muitas coisas em mim que não me deixavam olhar para dentro e compreender minha essência, meus valores. Ao perder meu pai, eu encontrei a mim mesma. A correria da vida nos desloca do que realmente importa, enquanto a vivência da morte nos coloca temporariamente no isolamento – nos sentimos só em nossas dores – e foi neste momento que presenciei os insights mais bonitos.

Produções artísticas lindíssimas que nasceram de homenagens, mudanças de vida, de emprego, de país, brigas desfeitas, relações consolidadas. Inúmeros relatos de pessoas que se acham melhores e mais fortes hoje.

A saudade é eterna, a dor também tem seus picos, mas se não esquecermos que valeu a pena cada minuto que passamos com aquela pessoa e que, se estivesse viva hoje, se orgulharia do caminho que encontramos para superar sua ausência. A experiência do luto pode ser considerada algo que podemos agradecer sem culpa.

Meu processo me levou à participação no Vamos falar sobre o luto e me sinto privilegiada por aprender com cada uma das 3000 pessoas que abriram seus corações e me ensinaram o verdadeiro significado das palavras amor, empatia, generosidade e acolhimento.

Obrigada, pai, por, até na morte, me ajudar a encontrar um caminho.