Esse projeto é um convite para quebrar o tabu. Um canal de inspiração e de informação para quem vive o luto e para quem deseja ajudar

A verdadeira dor da perda é falar sozinho

O João partiu cedo demais e aqui Marilu nos conta como é viver menos só na companhia de outras viúvas (e alguns viúvos) em um grupo online - adoro ter com quem falar que 'Não, ficar viúva não é a mesma coisa que se divorciar'.

arquivo pessoal

Dia 09 de setembro parecia um dia normal até que deixou de ser. Acordei muito cedo, desejei feliz aniversário para o meu pai, fui para o trabalho sem me despedir do meu marido, o João, que ainda dormia. Pouco depois, ele também saiu para trabalhar, e falamos amenidades durante o dia todo através de mensagens. João disse 6 vezes que me amava. Ele voltou do trabalho no horário de sempre. Já eu, me atrasei numa filmagem. Ele deu o jantar da nossa cachorra e do nosso gato e ficou me esperando para comer. Enfim, aquela rotina de sempre. Mas quando eu cheguei em casa às 3h30 da manhã, do dia 10, encontrei ele já sem vida. Ele foi embora assim, aos 36 anos, sem nenhuma explicação.

Eu nunca tinha pensado sobre a morte até esse momento. Pensar no sentido de pensar mesmo. Sempre ouvimos a expressão “a vida é curta”, mas nunca entendemos isso de fato. É comum acharmos que as pessoas só morrem nas outras famílias e não nas nossas.

Com a morte do João, a minha história virou de cabeça pra baixo. Eu não tinha ideia do que era viver um luto. Nunca imaginei que uma dor emocional pudesse causar uma dor física tão grande. Como alguém sobrevive a perda de alguém tão importante? Como eu continuava e continuo respirando? É normal o sol continuar a nascer sem o João aqui? E olha que além de todo o sofrimento pela ausência de quem amamos, ainda temos que lidar com muitas questões: como a falta de pertencimento, por exemplo. Se um luto já causa essa sensação, imagine ficar viúva aos 37 anos? Eu simplesmente não me encaixava mais na minha vida antiga.

Quando o João morreu, senti que não cremei só o corpo dele, muitos amigos do peito viraram cinzas também.

A maioria das pessoas, assim como eu, não foram ensinadas a lidar com a morte. Elas se projetam na nossa dor e não dão conta. E muitas vezes, elas acabam desaparecendo de nossas vidas, ou nos dizendo algo que nos magoam sem querer.

Depois de quase 7 meses da morte do João, e no começo da pandemia em São Paulo, comecei a me sentir cada vez mais sozinha (se é que isso era possível).

Fabricio Carpinejar tem uma frase que me identifico muito: “A verdadeira dor da perda é falar sozinho. Enfrentar a loucura de falar sozinho.”

É isso, a solidão de viver algo que quase ninguém viveu tira você dos trilhos.

No começo do meu luto, passei a ler instintivamente livros de mulheres que perderam seus maridos subitamente: Li o livro Plano B, da Sheryl Sandberg, O ano do pensamento mágico, da Joan Didion e A ridícula ideia de nunca mais te ver, da Rosa Montero. Era como se só essas mulheres me entendessem. Também comecei a seguir um grupo de viúvas nos Estados Unidos, criado por uma mulher que perdeu uma gestação num mês, o pai no mês seguinte, e o marido no outro mês. Veja você, desgraça pouca é bobagem. Quando eu me desesperava muito, eu entrava no Instagram desse grupo para ler as histórias daquelas pessoas. Mas ali não tinha muita troca além dos depoimentos.

Um pouco depois do Carnaval, a falta de pertencimento e a solidão apertaram tanto que numa das noites que passei em claro, eu descobri um grupo de apoio às viúvas (os) em Campinas: o Acolhe com Amor. Uma das idealizadoras do grupo, a Andreia Baroni, também perdeu seu marido de repente, num acidente de moto, quando estava grávida.

Cheguei a confirmar presença numa das rodas presenciais, mas quando a data se aproximou, eu não tive coragem de ir. Ir até outra cidade, falar com estranhos sobre a morte do meu marido me demandou uma coragem e uma força que eu não tinha naquele momento. Sei lá, de repente isso me pareceu uma insensatez. Tive até um pouco de preconceito, não sei explicar. João daria risada da minha cara, sabe assim?

Quando começou a pandemia e o confinamento aqui em São Paulo, a solidão falou mais alto, e daí descobri que o grupo faria sessões online. Na primeira roda que participei, contei a minha historia e fiquei impressionada com o que aconteceu. Lembro de ter trazido a questão da culpa por não ter chegado mais cedo em casa, e o trauma de não ter conseguido fazer a massagem cardíaca no João como o SAMU havia orientado ao telefone. A viúva que falou na minha sequência me consolou dizendo que era médica e que mesmo assim, também não tinha conseguido salvar o marido. Choramos horrores juntas e ali criamos uma identificação e um carinho enorme. Ela conseguiu amenizar um sentimento que eu já estava carregando há meses. Logo na primeira reunião eu entendi o sentido do grupo, nós temos o poder de acolher o outro somente compartilhando nossas experiências.

O mesmo grupo também existe no WhatsApp. Nele conversamos durante o dia inteiro, e sempre divido experiências que eu não tenho coragem de falar nem com os meus pais. O bacana é que somos bem diversos inclusive em tempo de viuvez. Nesse grupo tem desde uma pessoa que já é viúva há 17 anos e que já se casou novamente, até viúvos de 1 semana. Isso faz com que, eu aprenda com quem está há mais tempo nessa jornada, e que também consiga consolar quem está há menos tempo.

Sempre dizemos que esse é um grupo que ninguém quer fazer parte, mas que já que infelizmente ficamos viúvos, que bom que temos uns aos outros.

Nesses dois últimos meses, além das rodas que acontece sábado sim, sábado não, já tivemos jantares online, já criamos um projeto juntos, e até já planejamos uma viagem pra Campinas quando a pandemia passar.

Quase sempre vejo alguma viúva novata dizer que esse grupo é o lugar onde ela se sente mais segura e compreendida.

Hoje em dia, o Acolhe com amor é uma das coisas que me mantém firme. Adoro ter com quem falar que “Não, ficar viúva não é a mesma coisa que se divorciar”. Lá debatemos inclusive questões práticas como dúvidas sobre o IR do falecido, ou a pensão no INSS.

No grupo, eu entendi que sou a única pessoa a ter perdido o João como esposa, mas não preciso carregar essa dor sozinha. Sempre terei alguém para compartilhar.

 

Marilu Rodrigues é publicitária, mora com Amélie e Haroldo e há 9 meses está tentando reaprender a viver sem o João