Esse projeto é um convite para quebrar o tabu. Um canal de inspiração e de informação para quem vive o luto e para quem deseja ajudar

Bom dia, pai, bom dia, mãe

A jornalista paulista Claudia Giudice perdeu o pai e a mãe, vítimas de câncer, em um intervalo de seis meses, entre o ano passado e este. O pai partiu primeiro e seu luto foi atropelado pela necessidade de amparar o final da vida da mãe, em pleno isolamento pela pandemia. Neste lindo relato, ela conta das saudades e dores misturadas, dos últimos dias e conversas, e de como escrever tem ajudado a atravessar as noites, falar com eles e sentir seus cheiros, textura e presença

O dia amanheceu cinza contrariando a véspera. Levanto do escritório e vou em busca de um café. Ainda é cedo para o tempo da pandemia. Meu filho dorme. Nil também. Quando lembro que esqueci a máscara e a luva, vejo o armário de madeira fechado. Abro com cuidado para não tocar o sino pendurado na porta. Mania de infância. Medo de infância. O sino avisava minha mãe que bisbilhotávamos no armário de preciosidades dela. A porta abre silenciosa. Antes de ver os copinhos de cristal e de lalique, o cheiro me derruba. O cheiro deles. Da casa deles. Da vida deles. Naquela fração, juro, eles renascem, de novo, no meu nariz. Bom dia pai, bom dia, mãe.

Nasci em 2 de novembro de 1965. A morte e a memória dos mortos fez parte da minha infância e adolescência até meus avós paternos morrerem na década de 1970. Dia de aniversário era dia de ir no cemitério. Chato, mas sem drama. Depois, tinha festa, bolo e presentes. Desde sempre, entendi que o verbo nascer terminava no morrer. Meu primeiro luto foi na infância quando morreu o canarinho Chuí do meu tio Silvio. Inventaram que ele tinha voado. Rápido descobri a mentira e chorei, chorei como a menina da canção do sabia na gaiola que fez um buraquinho e voou, voou. Depois perdi minha avó amada e inspiradora e o avô com quem eu jogava cartas. A avó e o avô maternos que não gostavam de mim não deixaram saudades mas me assombraram por anos por que não houve velório, enterro nem luto. Minha família pequena ficou minúscula quando partiu minha tia avó de quem eu cuidava. Ela morreu feliz, do jeito que eu quero. Dormia de camisola, depois de fumar o último cigarrinho e beber seu uísque de cada dia. Ninguém mais quis ir ao cemitério e 2 de novembro passou a ser apenas o dia do meu aniversário, com muita festa a beira mar.
Outros lutos vieram com a idade e a vida. Enlutei feio quando fui demitida, depois de trabalhar, viver e me divertir por 23 anos em uma mesma empresa. Sim, morri ao perder o crachá e enlutei de mim mesmo até reencarnar na atual vida que eu levo. Foi tão doído perder aquele emprego, que um dia defini minha demissão como morte para uma plateia de 300 pessoas em processo de outplacement (em português, procurando novo emprego). Fez-se o silêncio. Afinal, todos ali haviam “morrido” recentemente como eu.
O luto corporativo se tornou um livro chamado A Vida Sem Crachá e segui tocando a vida com minha pequena família. Há um ano, o telefone tocou e, sem saber, ganhei um crachá de residente do hospital Beneficência Portuguesa de São Paulo. Em menos de 72 horas, meu pai, Paulo, e minha mãe, Marina, foram diagnosticados com câncer em fase de metástase. Havia luta pela frente? Pouca. Fomos chamados a ter força e coragem. Meu pai e minha mãe optaram pelo tratamento paliativo. Em silêncio, pensei: quem irá primeiro?

Marina e Paulo, os lutos misturados
Marina e Paulo, os lutos misturados

 

Larguei meu negócio na Bahia e voei para São Paulo com a missão de cuidar do meu pai para poupar minha mãe. Ele se mudou para minha casa e vivemos poucos e intensos dias. Revivemos nossa intimidade e cumplicidade dos tempos de infância e adolescência. Conversávamos sobre carros, canetas e programas de tv. Ele sabia que ia morrer. Eu também. Ele tinha medo de morrer, mas não confessava. Apenas ficava com seus imensos olhos azuis molhados, mirando o vazio. Eu percebi e oferecia uma guloseima. Ele a dispensava, o que era inédito em sua vida de diabético. No fim, preferia aspirina aos doces. Nas poucas vezes que viajei, ele piorava. Na última viagem, quando decidi passar meu aniversário na Bahia (erro imperdoável) ele piorou muito. Voltei dia 4, internei-o no dia 5 e ele morreu dormindo, segurando na minha mão e eu a dele, no dia 10 de novembro, um domingo tão frio e chuvoso que parecia dia dos mortos.
Não tive tempo, nem vez de chorar. Meu foco era minha mãe, o amor da vida dele, que havia perdido o amor da vida dela. Minha mãe também sabia que ele ia morrer. Mas ela achava que morreria antes. Era o que ela queria. Quando percebeu que as dores dele se tornaram insuportáveis, negociou com Deus a partida dele. Prefiro sofrer a vê-lo sofrer, dizia. Elegante e altiva, minha mãe não perdeu o controle. Perdeu a alegria esfuziante. Se esforçava para comer. Se esforçava para rir. Se esforçava para viver. Foi guerreira. Foi minha mãe.
Nosso primeiro mês de luto foi frenético. Resolvemos todas as burocracias em menos de 30 dias. Inventário, INSS, contas, cancelamentos, arrumação. Fazíamos de tudo para nos ocupar e distrair a dor da morte dele e a dor da doença dela. Minha mãe era muito medrosa na teoria. Na prática, encarava tudo com uma coragem estranha ao seu vocabulário cheio das interjeições: “que medo” e “que horror.” Éramos muito diferentes, mas nos misturamos no luto dele. Ela ficou mais bagunceira e eu mais ordeira. Por um mês e dez dias, ela topou morar na minha casa na Bahia. Veio se despedir do mar que inspirou seu nome Marina e passar o último Natal e Réveillon comigo e meu filho, Chico. De novo, sabíamos que ela ia morrer em breve. Mas fizemos muitos planos de viagens para Portugal, Rio de Janeiro, Foz do Iguaçu, Gramado, Paris e Roma. Quando a doença dela voltou pesada, retornei a São Paulo.  Ela, pela primeira vez na vida, aceitou ajuda. Voltei para casa dela depois quase 40 anos. Aterrissei no dia 17 de março. Era o começo da pandemia.
Minha mãe tinha medo de pegar covid 19. O medo dela era tão grande, que ela fez que esqueceu o câncer e o luto do meu pai. Eu também tinha medo, mas confesso que senti um conforto egoísta de poder estar trancada em casa com ela por causa dessa doença maldita. Não precisava trabalhar na Bahia. Não precisava viajar. O mesmo conforto que sinto hoje ao usar máscara e poder não sorrir quando estou triste ou chorar quando sinto saudade. Ninguém vê. É prático e cômodo.
Nosso “home life” foi intenso. Conversamos como nunca. Vimos seriados na TV. Pude cozinhar para ela e surpreendê-la. Pude vesti-la, cuidá-la e penteá-la. Meu pai tornou-se nosso companheiro de assunto e fala. Sempre comentávamos o que ele diria ou faria em qualquer situação. Apostávamos que ele não quereria usar máscara. Que morreria de ódio de ter que ficar preso em casa. Sim, meu enclausuramento foi feliz ao lado dela. Tivemos uma linda Páscoa com bacalhau feito por mim e serenata feita pelo meu filho. Ela, afinada, cantou com ele as canções de sua juventude.
Ò Dora, rainha do frevo e do maracatu
Ninguém requebra, nem dança, melhor que tu

O câncer e a maldita dor que ele provocava, não perdoou a pandemia, nem nosso momento particular. A morfina se tornou nosso pão de cada dia. Andava pela casa com comprimidos no bolso e minha mãe colecionava adesivos nas costas. No Dia das Mães, 10 de maio, exatos seis meses da morte do meu pai, minha mãe pediu clemência. Queria dormir para descansar. Para sempre. A doutora Ana Claudia Arantes, uma das mais experientes médicas paliativas do país, entendeu e atendeu o desejo dela. No dia seguinte, minha amiga irmã, dra Roberta Frota Villas Boas conseguiu interná-la no Hospital 9 de Julho. O quinto andar do bloco C foi nossa casa por 17 dias. Minha Bela Adormecida abraçou Morfeu no dia 20 de maio, quando completou 77 anos. Todos os que ela amava vieram lhe dar parabéns. Uma semana depois, feita de muita dor e agonia para mim, ela parou de respirar. Mais uma vez, tive a sorte de estar lá, de mãos dadas com ela, como fiz com meu pai.

 

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Acabo de reler meu texto. Meu relato sobre o luto parece aquela canção do Chico Buarque Valsa Brasileira

Subia na montanha
Não como anda um corpo
Mas um sentimento
Eu surpreendia o sol
Antes do sol raiar
Saltava as noites
Sem me refazer
E pela porta de trás
Da casa vazia
Eu ingressaria
E te veria
Confusa por me ver
Chegando assim
Mil dias antes de te conhecer

Eu vi a morte antes dela de fato vir. Enlutei antes da hora por meu pai. E depois abafei meu sentimento pela perda dele para subir a montanha amparando minha mãe. Escrever sobre esses meses tem sido um jeito bom de saltar as noites e conviver com a saudade de ambos. Falo muito com eles. Arrumo as coisas deles, que trouxe para minha pousada baiana. Sinto as texturas e os cheiros. Tenho a sorte também de receber hóspedes que vão e que vem. Aqueles que os conheceram, perguntam como eles estão. Falo tranquila sobre a partida deles e agradeço a gentileza da lembrança. Assim, eles seguem vivos comigo, agora sem sentir dor, agora sem agonia. Como escreveu meu filho Chico, “será novamente tempo de valsas, boates, Glenn Miller e Nat King Cole. Nossas madrugadas serão preenchidas pela importuna buzina de um jaguar verde conversível no qual, eles, jovens, porque juntos, cruzarão os mundos que um dia sonharam conhecer.”