Esse projeto é um convite para quebrar o tabu. Um canal de inspiração e de informação para quem vive o luto e para quem deseja ajudar

Um nome para a sua dor

O sofrimento gerado pela infertilidade e tentativas frustradas de engravidar é muito profundo. Como lidar com esse luto que não é reconhecido pela sociedade e às vezes nem por quem o enfrenta? Quatro mulheres estudiosas do assunto nos ajudam aqui a entender e aprender como acolher quem sofre essa "perda do que não teve".

A gente costuma rebater o tabu de falar sobre o luto com a afirmativa implacável de que todos nós passaremos por ele. Todos perderemos alguém e sentiremos essa perda. Todos nós, em algum momento, viveremos o luto. Não é bom, não é desejável, mas é sabido, esperado e natural. Mas, e quando enfrentamos um luto e nem sabemos que estamos diante dele? Quando enlutamos e não reconhecemos pelo que estamos passando? Quando nossa tristeza a partir de uma perda não é enxergada pela sociedade e nem por nós mesmos? Foi com grande surpresa e um sentimento de profunda comoção que aprendi, recentemente, sobre um dos muitos lutos por algo que não nomeamos. Falo do luto na infertilidade após tentativas sucessivas de tratamento. Este é o titulo de um dos capítulos do livro Luto por Perdas Não Legitimadas na Atualidade (Summus editorial, 2020) organizado por nossa querida “madrinha”, a psicóloga e especialista em luto, Gabriela Casellato, fundadora  do

4 Estações Instituto de Psicologia.

capa livro

Tivemos a honra, como criadoras do Vamos Falar Sobre o Luto, de ser convidadas para escrever um capítulo e contar a nossa história nesse livro, ao lado de outros trabalhos e pessoas fantásticas. Entre os autores convidados, estão quatro ex-alunas de pós-graduação do Instituto, uma médica psiquiatra e três psicólogas (Eliane Souza Ferreira da Silva, Hélia Regina Caixeta, Juliana Sales Correia e Simone Maria de Santa Rita Soares) que estudaram esse aspecto tão impactante quanto pouco divulgado e reconhecido como luto: o daquilo que nem chegou a ser. A perda do que não houve, do filho que não veio, do sonho e das expectativas que ficaram em suspenso, como costuma acontecer com tantas mães e casais que se lançam a essa jornada da paternidade biológica. O luto pela infertilidade começa com  o sentimento de perda de potência. Seja por um problema do homem ou da mulher, a dor que se instala pela incapacidade de gerar um filho espontaneamente é o início de um processo que costuma enfrentar desafios dolorosos e sucessivas frustrações pelas tentativas mal sucedidas. De acordo com a Organização Mundial da Saúde, entre 10 a 15% dos casais são considerados inférteis. No Brasil, cerca de 8 milhões de pessoas têm problemas para engravidar.

A partir da decisão de tentar a gravidez, o casal passa a vivenciar um processo que pode ser longo e sem final feliz. Ao longo das tentativas não é incomum que, principalmente as mulheres, tenham sentimentos de culpa (por que estou fazendo isso se há tantas crianças precisando de uma família que podem ser adotadas?) e sejam julgadas por não ter, de cara, optado pela adoção. Em muitos casos de infertilidade, não há um limite definido para as tentativas e tratamentos possíveis, o que gera ainda mais angústia: qual é o momento de desistir?

Entrevistei uma das profissionais autoras do estudo e do capítulo, a psiquiatra Simone Soares, que viveu na pele esse luto sem nome durante 4 anos. Ela me contou que um dos agravantes das suas sucessivas tentativas frustradas foi a pouca atenção aos aspectos emocionais relacionados à infertilidade. Como, dependendo do caso, não há um limite para o número de procedimentos da fertilização assistida (além dos financeiros, naturalmente, que são bem relevantes, e da estrutura psicológica para agüentar a ansiedade e o desconsolo quando não dá certo), a paciente ganha a responsabilidade extra de ter que decidir quando é hora de desistir. Há, conforme me contou Simone, sempre um fio de esperança e a culpa de jogar a toalha. “Será que não seria exatamente na próxima vez que ia rolar? E eu desisti justo agora?”, perguntava-se. E seguia para uma mais.

Cada vez que eu menstruava, vivia um luto” me contou a jornalista Carla Gullo, que passou 6 anos entre tratamentos de fertilização que incluíram uma cirurgia. “Eu me lembro da dor, do choro e das pessoas que insistiam em dizer que ‘eu devia adotar’, porque aí engravidaria. Achava um absurdo usar a adoção como forma de conseguir engravidar. “A adoção” diz, “deve ser um objetivo por si só, não uma ponte para chegar à gestação”.

Há outras sugestões insensíveis e cobranças equivocadas nesse processo de luto não legitimado. “Quando, depois de uma cirurgia para desobstrução de trompas eu fui informada que não havia mais um obstáculo físico para a gravidez, passei a ouvir que era uma questão “de cabeça”. O que isso me ajudava? Como se fosse apenas virar uma chave mental e tudo estaria resolvido…

Outra amiga, que se submeteu a quatro tentativas, definiu o processo como um teste para todos os seus limites: “é caro, gerador de enorme ansiedade, doloroso pelas perfurações constantes que temos que nos fazer e desestabilizador emocional em conseqüência das bombas de hormônio que injetamos em nosso organismo”

As autoras do estudo e do capítulo sobre o tema descrevem muito bem a complexidade de cada uma das etapas da espera e suas conseqüências na vida pessoal, conjugal, profissional e financeira. “O mundo interno do casal fica voltado para o tratamento e para seu resultado, mas as vida e as obrigações seguem a todo vapor no mundo externo, o que dificulta uma adequada elaboração dessa dor por quem a vivencia.” (…) “A auto-estima fica abalada, sobretudo naquele que foi diagnosticado com a infertilidade. A identidade masculina/feminina está intimamente ligada à capacidade de procriar. Ser incapaz de gerar pode ser sentido como incapacidade de cumprir seu papel social. (…) “O não nascimento do bebê convida, então, a esse lugar de repensar as expectativas futuras. O luto na infertilidade ocupa um não lugar de um luto que não se reconhece, de um projeto que não se cumpriu. Para compreender a dimensão desse luto é necessário olhar não apenas para a perda do bebê, mas para todas as implicações dela.

anthony-tran-GVSoj-FO5LM-unsplash

Foi esse o pensamento das quatro pesquisadoras ao definir um tema tão pouco abordado como  projeto de pesquisa de sua pós graduação no 4 Estações Instituto de Psicologia. Sua ideia, além de jogar luz sobre esse aspecto do luto, era diminuir a solidão que cerca as mulheres com diagnóstico de infertilidade. Para isso, ao final do curso, criaram um espaço virtual de acolhimento: o site Quando a Árvore Não dá Fruto (https://quandoaarvorenaodafruto.com.br/

“Elegemos as mulheres como público alvo porque elas são mais abertas e buscar ajuda e não havia no Brasil essa fonte de informação e troca com outras mulheres vivenciando o mesmo”, conta Simone. Perguntei a ela como os amigos e familiares podem ajudar alguém passando pelo tratamento, já que é um tema difícil de ser abordado. “É muito difícil compartilhar o processo do tratamento e tentativas com o nosso círculo social. É comum que a gente se sinta incomodada com as amigas que são mães ou estão grávidas. É normal querer fugir de situações sociais que envolvem crianças. Ao mesmo tempo, nos culpamos por esse sentimento e não nos autorizamos a senti-los. Por isso, a ajuda deve vir das pessoas mais próximas e com muita delicadeza e respeito “.

O melhor jeito de demonstrar empatia é se aproximar e dizer. ‘Olha, eu sei que essa é uma situação muito difícil, gostaria de falar sobre isso? Estou pronto para ouvir’. E , se a resposta for sim, ouvir sem criticas. Mas não julgar quem preferir calar”. Outra dica importante que serve para todos os casos é bem simples: ‘ Não pergunte a um casal quando eles vão engravidar ou se estão “encomendando. Nem quando eles vão ter um segundo filho se houver um primeiro (sim, há casais que conseguem ter um filho mas não engravidar novamente)”. Não é da sua conta e pode magoar muito quem quer muito e não consegue ter filhos”diz Simone.

As fundadoras do site pretendem também conscientizar e sensibilizar as equipes médicas que trabalham nessa área em direção a um olhar mais humanizado sobre a paciente das fertilizações assistidas. Uma das amigas ouvidas me conta que pesquisou três diferentes clínicas, todas bem recomendadas e caras, e que a abordagem dos médicos, todos homens, foi muito semelhante: falaram em chances, estatísticas, ausência de garantia, procedimentos e assinaturas. Ela diz que se sentiu como se estivesse contratando um financiamento imobiliário.

A mensagem mais importante do site é “você não está sozinha”. Tudo o que você sente nesse caminho é mesmo difícil e doloroso. Dar um nome a esse sentimento é o primeiro passo para se ajudar a elaborá-lo. Chama-se luto. E merece a empatia de todos nós.