Esse projeto é um convite para quebrar o tabu. Um canal de inspiração e de informação para quem vive o luto e para quem deseja ajudar

Mas ela não chorou!!!

O luto tratado em uma série de TV revela os preconceitos que cercam quem ficou e mostra que não existe uma única maneira de vivenciar a perda de alguém muito próximo e amado. O manual do enlutado ideal não existe

MAS ELA NÃO CHOROU!!!! ELA FOI TODA PRODUZIDA E MAQUIADA NO FUNERAL! ELA COMPROU UM APARTAMENTO ENORME NA SEMANA SEGUINTE DA MORTE DO MARIDO!!! ELA FEZ UMA CIRURGIA NO QUADRIL PARA PODER CONTINUAR A USAR SALTO ALTO!!!

Os comentários acima, assim mesmo, em letras maiúsculas, foram pinçados, entre dezenas, centenas de críticas exaltadas a um personagem de ficção: Carrie Bradshaw (Sara Jessica Parker), de Sex and the City, lembra? Vinte anos depois, a escritora e colunista de sexo ressurge uma linda cinqüentona em nova fase do seriado (And Just Like That, HBO Max), que fica viúva no primeiro episódio (peço perdão pelo spoiler, sem o qual não consigo desenvolver o tema desta coluna).

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Carrie não é um personagem real, tampouco sua viuvez. Mas as reações indignadas de parte do público, infelizmente são. Ao buscar veracidade (e suposta dignidade) no comportamento da mulher que acaba de perder o grande amor da sua vida, as pessoas condenam a trama, de forma geral, com olhar e script equivocados. Primeiro, porque não há script no luto. Segundo porque, mesmo que a gente queira julgar Carrie sob uma ótica realista, o que ela fez não tem absolutamente nada de errado e condenável. Ou incomum.

É só parar e pensar um pouco: chorar não é sinônimo de tristeza. Nem a única forma de expressar sofrimento. Se vestir de forma exuberante para celebrar o serviço funerário do marido é coerente com o seu estilo fashionista. E, com toda certeza, o jeito que encontrou de vestir sua dor de luxo e homenagear o homem que a conheceu e amou assim, com uma roupa incrível por minuto.

O que a série mostra não é a definição do luto perfeito. Até porque isso não existe. Seu foco é sobre um determinado luto, uma determinada maneira de vive-lo: com apartamentos grandes e equivocados, encontros amorosos meia-boca e tentativas de seguir e encontrar uma nova maneira de ser. E é por isso que é tão consistente. E contribui para nossa compreensão das diversas de camadas do luto na vida real. O luto de Carrie não é “comportado”, mas reflete uma atitude positiva nas suas circunstâncias. Ela viu seu mundo desmoronar de um minuto para o outro e é corajosa o suficiente para experimentar o novo ao invés de apenas mergulhar no vazio daquilo que não está mais disponível.

Minha defesa da personagem e suas aparentes idiossincrasias não são apenas para recomendar a série (também são, e o spoiler não estraga muito já que acontece logo no início), mas para fazer um alerta importante sobre as criticas , estas sim, absolutamente reais , que comumente desabam sobre mulheres ou homens reais.

Nós falamos tão pouco sobre o luto e de como vivê-lo que não sabemos realmente o que esperar de alguém que o atravessa. E, por alguma razão descabida, acabamos nos sentindo no direito de julgar o comportamento do enlutado. Talvez assim fique mais fácil lidar com a dor alheia. Ao criticar a forma com que alguém sofre, tiramos um pouco dessa dor incômoda da nossa frente. Julgamos quem não chora, julgamos quem chora demais. Assim como achamos uma fútil demonstração de vaidade continuar a se arrumar e andar de salto alto, achamos péssimo que a pessoa se torne desleixada demais, deixe de se cuidar.

O manual do enlutado ideal é muito difícil de seguir. Exige o equilíbrio sutil entre a devastação e a resiliência, entre a dor extrema e sem pudor e alguma forma contida e nobre de dar vazão a ela. Impor essas normas a uma pessoa em um momento tranquilo da sua vida já é muito cruel. Imagine então fazer esse tanto de exigências com alguém cujo coração está partido, sem chão e sem bússola. Como se a perda não fosse o bastante, vem a cobrança ( às vezes até bem intencionada) de fazer menos isso ou mais aquilo. Uma querida amiga viúva me confidenciou que, depois de lutar com a própria auto-censura e se permitir se arrumar e ir dançar depois da morte do marido, teve que enfrentar os olhares de censura dos vizinhos no elevador. Chegou à festa com a maquiagem borrada de lágrimas e culpa. Ninguém merece.

Ao longo da série, que tem 10  episódios, há outras abordagens sobre o luto, nem sempre pela morte. Há o luto da perda da juventude, dos cabelos coloridos, das amizades perdidas, dos filhos idealizados. São muitos lutos e renascimentos.

And Just Like That, a vida segue, e isso é bom.