Inspiração - A gente indica, Reflexões
O Pai da Menina Morta
O luto do escritor Tiago Ferro, 42 anos, se tornou público, há dois anos, pelas circunstâncias trágicas e singulares da morte da sua filha. Menina de classe média paulistana, com acesso aos melhores hospitais, Manu, de 8 anos, foi vítima de uma doença aparentemente banal: complicações decorrentes de uma gripe Influenza B. Havia na época um surto de um tipo mais agressivo da gripe, o H1N1, e a comoção e confusão provocadas pela fatalidade que poderia acometer qualquer família fez com que o caso virasse notícia e seu pai porta-voz, via redes sociais, da versão correta do ocorrido. Foram, na primeira semana, mais de 30 posts no facebook. Logo depois, ele escreveria o lindo texto Não era mais terça-feira, mas também não era quarta, um relato detalhado e comovente publicado na revista Piauí, um mês depois do falecimento.
Durante o processo mais agudo do seu primeiro ano de luto, Tiago, editor e escritor, leitor voraz de ficção e não ficção, não leu nenhuma obra ligada ao tema da morte. Numa visão que classifica de muito pessoal, entendeu que ler sobre a experiência do outro não contribuía para aliviar a sua. Já a escrita teve um papel relevante. “O ato de escrever”, conta “não foi exatamente um momento de alívio ou cura – nem gosto muito dessa palavra. Mas quando eu escrevia acontecia algo ali que me conectava de novo ao mundo. Ou à minha filha. Hoje eu nem entendo como fiz isso. Eu estava completamente destruído e, mesmo assim, escrevia”.
A ideia de escrever o livro surgiu da catarse inicial e, à princípio, o autor pensou que seria uma continuação dos relatos biográficos. Mas entendeu logo que esse trabalho já estava feito: o livro, que concluiu em três meses, seria uma ficção. O Pai da Menina Morta, que começou a ser escrito em maio de 2017 , pouco mais de um ano da morte da filha, é um romance em que Tiago imprime aspectos da própria tragédia e sua configuração familiar (ele e a mulher, Mika, tem outra filhinha, hoje com seis anos, a Isa) ao personagem central, mas liberta o narrador de qualquer compromisso com fatos reais. A liberdade de explorar todos os aspectos da perda e do que ele chama de “situação limite” permite que a obra aborde sem pudor tudo o que acontece quando o mundo do narrador, tal como o conhecia, desaparece sob seus pés.
A primeira intenção era que O Pai da Menina Morta fosse escrito como um diário. O descompromisso com a cronologia, no entanto, logo fez com que a narrativa se decompusesse em uma riqueza maior de forma e emoções: trechos de emails, notas de jornal, diálogos corriqueiros, pensamentos, listas, verbetes, encontros, sonhos, memórias. Esses fragmentos estão repletos dor, poesia, humor, sexo, culpa, euforia, estigmas e até os clichês do luto propositadamente incluídos como parte do inventário que acompanha os que ficam, depois da morte de alguém muito próximo.
O fato de ter partido da própria história e de ter um titulo tão literal pode, a princípio, afastar um leitor temeroso da dureza do seu conteúdo. Mas a leitura promove, assim como a vivência de grande parte dos lutos, uma alternância de emoções que também incluem alegria, paixão e beleza. É, como Tiago define muito bem, a readaptação aos mundo depois que o narrador é arremessado ao estranhamento de uma situação limite. A história de alguém que volta desse lugar e vê que as coisas, tal como eram, não fazem mais sentido.
Seguem alguns trechos da conversa que tive com Tiago algumas semanas depois do lançamento do livro.
O titulo do livro é ao mesmo tempo um estigma e também o rótulo que passa a definir alguém que sofreu uma perda. Como você lida com a sua nova identidade?
Acho que lido bem. Não sinto constrangimento social. Mas, claro, sempre vou ser aquele personagem que quando chega carrega uma notícia não muito confortável. Em um grupo de pais, por exemplo, não é fácil. Mas não é fácil principalmente para osoutros. Eu já passei por isso. Para eles é muito duro pensar e se colocar no meu lugar.
Como você encara a dificuldade de algumas pessoas de lidarem com o seu luto?
A gente fica mais generoso e acaba entendendo que quem se afasta não consegue lidar com o assunto. No nosso caso, pessoas que nem eram amigas, se tornaram muito próximas. E amigos íntimos sumiram. Mas tudo é compreensível.
No livro você aborda a questão dos preconceitos sociais e como as pessoas esperam que alguém que perdeu um filho se comporte. Você passou ou passa por isso?
O livro se preocupa em exacerbar esses clichês. Nem tudo ali mencionado sobre esse jogo social foi uma experiência pessoal. Mas se eu escrevi é porque de alguma forma eu identifiquei que isso está no ar. Esse estigma, ou essa cobrança ou esse olhar que interpreta, é quase uma estrutura da sociedade. São respostas prontas a uma situação muito brutal. Assim como as respostas de consolo são um clichê, essas cobranças também são. Não tem muito como fugir disso. É um pouco um teatro social e o livro trabalha bastante com isso. Quando o narrador tenta se reconectar ao mundo em que as coisas já não fazem mais sentido, tudo parece uma encenação.
Você acha que a sociedade precisa de uma educação para a morte?
Acho que talvez o que falte é uma educação para a vida. Porque a morte, a gente não sabe o que é. O personagem percebe que todo mundo aceita o seu papel social, as máscaras a partir de cargos, fama, nomes. Todo mundo aceita muito barato esses papéis e passa a vida inteira dessa forma. E ele ia passar também, não fez uma busca filosófica, foi arremessado para fora. Ele não tinha uma busca, foi obrigado a ter. E é a partir daí que nada mais cola, nem a experiência dos que passaram pela mesma coisa.
Seu personagem percorre alguns caminhos naturais para mitigar a dor. As tentativas de experiências espirituais “não funcionam”. Qual foi, no seu caso, a experiência ou o caminho mais eficiente para tomar controle da dor?
A única crença que o personagem tem é na literatura. Se você se junta em uma igreja, em determinado culto, você encontra uma resposta. Mas você tem que interromper essa caminhada que ele faz no livro, desconstruindo tudo. Ele não para: vai a uma sessão espírita, tem seu momento na porta de uma igreja, tem a terapeuta budista que tem seu encanto e acaba descambando para uma coisa mais corporal. Mas ele não abre mão de algum nível de autonomia. Quando você se encontra em seu grupo e acha que a resposta é esta, você tem que abrir mão da autonomia. E o personagem tem uma espécie de fé na literatura. Ele vai até o fim e não encontra uma resposta. Encontra uma experiência cada vez maior. Por isso acho que o livro não fornece respostas. E eu mesmo não saberia fornecer essas respostas, para não trair o livro.
Você citou Eric Clapton , Gilberto Gil e Carlos Drummond de Andrade, pais que perderam filhos. Foram histórias que você buscou pesquisar para entender como eles reagiram às perdas?
Eu não me aprofundei em nenhuma das histórias dessas pessoas.O que me interessou neles para o livro foi criar um grupo de gente que passou pela mesma experiência e, no fundo, um estar entre os seus, que não resolve a sua questão. Ler sobre a experiência do outro não preenche a sua.
Você conta que escreveu o livro em três meses. Como foi?
Foi totalmente caótico. Eu não deixei de trabalhar para escrever. Escrevia a qualquer momento do dia ou da noite. Almoçando, escrevia no celular. Se eu estava na rua e me vinha alguma ideia eu gravava um áudio para depois retomar e escrever. Foi um pouco como o próprio livro, bagunçado.Escrever foi sempre muito bom. As pessoas me perguntam como eu tive força para escrever e eu digo que foi bom. O momento da escrita funciona como o preenchimento de um vazio. Não o vazio de trazer de volta quem partiu porque isso a gente sabe que não tem, não tem cura. Mas você fica imerso naquele processo de escrever, de reler, de corrigir, e é bom.
Você ficava mais feliz ou mais triste enquanto escrevia?
Não consigo identificar o estado de espírito de antes e depois da escrita. Como eu já disse, se eu pudesse definir isso, eu acreditaria que o livro tem uma função terapêutica. Eu não acredito: nem para quem escreve, nem para quem lê.
Ler alguma história de perda, seja ficcional ou não parece gerar nas pessoas enlutadas uma sensação de pertencimento. Você não acha que isso pode ajudar?
O que tenho procurado fazer da forma mais honesta possível é deixar claro que não me sinto confortável com a ideia de poder ajudar quem está passando por algo parecido com que passei. Talvez por isso, eu tenha saído para o caminho da ficção.
Por que você acha isso?
É porque eu não acredito que eu possa ajudar alguém, eu não acho que eu tenho essa experiência, embora tenha acontecido comigo. A gente não sabe mais do que ninguém. A gente ter passado por uma dor enorme, ou uma experiência trágica, não nos faz saber mais da vida. Transforma sua vida, sim, mas não me autoriza a falar como quem pode ajudar. Tenho procurado falar do livro, mas não seria honesto recomendá-lo como “terapia”.
Mas você acha que esse mergulho no auto-conhecimento que gerou o seu livro funcionou como uma terapia para você?
Sim, sem dúvida, o que eu não posso é classificá-lo como tal porque seria como uma traição ao livro. Quem for ler o livro depois de ter passado por isso, pode encontrar nele perguntas que alargam a experiência. Mas não respostas. Se eu for tentar dar respostas sobre ele eu estarei fazendo algo que o próprio livro não deu. O livro vai sondar questões que não estão dadas. Ele estabelece novas perguntas, para mim literatura é isso.
A perda de um filho o joga em uma situação limite na qual você questiona o sentido de continuar vivendo. O que você buscou como sentido de vida depois da sua perda?
A vida muda. Completamente. Pode ser clichê mas de fato a gente aprende que não tem o controle de nada. Havia antes uma enorme preocupação de preparar a Manu para o mundo mas também de preparar o mundo para a Manu. Como vai ser esta cidade quando ela for adolescente? O que a gente pode fazer para melhorar essa loucura, essa violência? E agora, não. Agora, a nossa percepção não é mais essa. É de reconhecer os momentos, viver intensamente os momentos. Muda também a perspectiva do que seja uma vida longa. Alguém morre aos 70 anos e as pessoas acham que teve uma vida breve: não! breve foi a vida da Manu. Talvez um aprendizado, sem a pretensão de dar uma lição, é passar a fazer as coisas sem esperar nada em troca.
Você procurou dar um sentido à sua experiência através do livro?
Eu poderia ter dado outro formato ao que aconteceu. Buscar, por exemplo, silenciar essa experiência, não torná-la pública. Se eu escrevi um livro que chama O Pai da Menina Morta, eu estou de certa forma me recolocando nessa experiência. Independentemente de ser um relato biográfico, eu não estou deixando passar. Essa história continua aqui.
Como você classificaria o seu livro?
Não acho que seja um livro sobre o luto. É um livro sobre o depois do luto. É um livro sobre a potência da vida, sobre estranhamento, sobre o teatro do mundo. É sobre uma experiência muito mais compartilhável do que o luto, mais abrangente do que isso. As pessoas que leram comentam que o livro não é assustador como parece pelo titulo e por partir de uma experiência real. Acho que isso se deve ao próprio ritmo do livro, que impede o leitor de afundar. Como é fragmentado e traz listas, verbetes, trechos de contos sexuais, ele empurra o leitor para o próximo trecho. E tem alguns que são mesmo mais duros, sobre a morte, a perda. Mas conduzem o leitor para uma experiência que não é de baixo astral.
Você imagina que um próximo livro seguiria trazendo o tema da vida e morte?
Eu não imagino trabalhar novamente essa questão. É claro que eu sempre vou ser uma pessoa marcada por essa experiência, mas não imagino que o tema volte como centro de um novo livro. Isso está feito.