Inspiração - Belas Histórias
Um por todos, todos por um
Por muitos anos acreditamos que sua partida não seria precoce, que a medicina iria encontrar um caminho para ele e a doença atrapalharia sua infância, mas não tiraria sua vida.
Aos 10 anos meu sobrinho acordou um dia com dor na coluna. O que parecia ser uma noite mal dormida virou muitos anos de sono perdido pela preocupação.
O diagnóstico que ninguém quer ouvir veio atrapalhar a infância e adolescência de um menino lindo, cheio de vida e louco por esportes.
O primeiro resultado era ruim, mas não o pior. Felipe tinha um tumor atrás da coluna vertebral considerado benigno, mas que precisava ser retirado para não comprometer sua coluna. Uma cirurgia grande, extremamente arriscada e invasiva para um adulto, imagine para uma criança de 10 anos? Mas nossa criança se mostrou um grande gigante de alma. Enquanto todos nós chorávamos por dentro ele olhava, serenamente, dizendo que estava tudo bem.
A primeira cirurgia foi muito bem sucedida, mas o problema estava longe de ser resolvido. O tumor estava localizado numa região extremamente arriscada e não pôde ser retirado por completo. Nos restava esperar e ver como seu corpo, o tumor e a medicina trabalhariam juntos.
Foram 12 anos de luta, muita pesquisa, consultas, viagens e nada livrava nosso menino das cirurgias para conter o tumor que insistia em crescer e arriscar sua função motora.
Além de toda a manipulação em sua coluna, existia um risco que tirava o sono de todos que acompanhavam sua trajetória. O tumor mudar de grau. E foi o que aconteceu. De benigno e “inofensivo” ele foi ganhando força e agressividade. Começaram os tratamentos quimioterápicos e a palavra câncer infelizmente entrou em nossa família.
Nada parecia abalar sua força interna. Mesmo nos piores momentos de sua luta eu jamais o vi reclamar, pelo contrário, ele foi se transformando ao longo dos anos num garoto mais sensível, doce e preocupado com os outros. Quanto mais ele sofria, mais ele crescia e se espiritualizava.
Sim, houve momentos de raiva, medo e testes, principalmente a cada má notícia que o tirava da rotina comum de um adolescente e ia restringindo cada vez mais os esportes que podia praticar. Mas esta parte sabíamos apenas pelas conversas paralelas com meus cunhados.
Aos 22 anos começou a fase final de sua luta e o começo da tarefa mais difícil que eu enfrentaria. Preparar meus filhos para uma possível despedida. Nunca perdemos as esperanças, mas os médicos e a própria evolução de sua condição física nos alertavam que o fim estava se aproximando.
Meus filhos fazem parte da “segunda” geração de netos, então o Felipe era aquele primo mais velho, ídolo, consultor, principalmente para minha filha mais velha.
Quando não sabia como nos convencer a fazer determinada coisa, ela imediatamente ligava para ele e pedia ajuda. Sua entrada na adolescência foi muito amparada pelos conselhos e dicas do primo.
Nesta mesma época, acredito que intuitivamente, minha cunhada e eu tivemos a ideia de criar um jantar semanal que, carinhosamente chamamos de jantar dos primos. No início vinham apenas os primos menores e, aos poucos, os grandes começaram a aparecer também, inclusive o Felipe, já bastante debilitado pela doença.
Sinto que internamente ele sabia que aqueles momentos seriam preciosos para suportarmos todos juntos a dor de sua partida. Eu, como mãe e tia, agradecia emocionada sua generosidade em sair de quimioterapias e ainda enfrentar a gritaria dos pequenos. Tudo para estar ao nosso lado. Como se ele soubesse que, a cada semana, nos despedíamos um pouco.
Os jantares sempre tiveram uma dinâmica artística muito interessante. Não somos nada da arte, pelo contrário, mas acho que ela surgiu para lidarmos com aquele luto antecipatório de uma forma mais fácil, simbólica e terapêutica. Cada semana surgia uma ideia diferente de brincadeira. Circo, passa- anel, mímica, desenhos e até cartazes e mensagens de força nas situações de internação dele.
Quando suas ausências começaram a ser mais freqüentes, inevitavelmente a pergunta que eu não queria ouvir surgiu: “Mãe, o Felipe vai morrer?“.
Como dizer a uma menina de 15 anos que seu maior ídolo não tinha mais chances? E explicar ao meu filho de 6 que jovens também morrem?
Lembro de uma conversa onde meu filho nos disse que o primo não poderia morrer porque ele ainda tinha muitas meninas para namorar! Felipe era tão sedutor que, nem mesmo todos os tratamentos e cirurgias o impossibilitaram de namorar e seduzir qualquer garota bonita que passasse por ele.
Mas as conversas duras e francas precisavam acontecer, e mesmo que tentássemos fugir do assunto para poupá-los, eles nos imploravam por sinceridade. Minhas duas filhas já tinham enfrentado a morte do meu pai e sabiam bem o significado da morte, do luto e tudo que em breve passaríamos.
Tentei da forma mais amorosa que pude dizer que estava sim chegando perto da despedida, mas que não tínhamos ainda perdido a esperança. Que ele já estava ficando cansado de lutar e que talvez o melhor para ele seria ir embora. A verdade naquele momento serviu como um alívio para os três. Por mais difícil que seja, a falta de informação faz crescer a angústia porque é como se não autorizássemos o sofrimento a se manifestar também.
E ao abrir aquele espaço de conversa em nossa família, meu marido e eu também nos libertamos de nossas próprias angustias. Na dor máxima da vida, o melhor recurso que temos para enfrentá-la é o amor. Abraçar os pequenos corpos dos meus filhos e poder mostrar para eles que estaríamos todos juntos foi o melhor consolo que tivemos naquelas noites escuras.
O Felipe se foi no dia 14/10/2017. No dia seguinte aconteceria o jantar dos primos. As crianças nos pediram para não desmarcarmos. Todos apareceram, inclusive o Felipe em nossas memórias mais fortes.
Neste dia eles construíram a cena que reflete o luto de nossa família!
A pirâmide humana dos primos.
Acho que mesmo os pequenos sabiam, no fundo do coração, o que aquela pirâmide representava naquele momento.
Eles enfrentariam juntos aquela perda.