Esse projeto é um convite para quebrar o tabu. Um canal de inspiração e de informação para quem vive o luto e para quem deseja ajudar

“Força porra nenhuma”

Desde que seu pai morreu, a Su Amelia passou a entender o Luto de forma diferente, não como uma fase mas como um sentimento eterno. E a partir de seu novo olhar, nunca mais falou “força!” pra alguém que perdeu alguém.

Corria bem a sessão de “Os Fabelmans” – aquela conhecida emoção spielberguiana que crava um sorriso no rosto e arranca uma inofensiva lágrima no final. O que eu não contava era que, lá pelas tantas, apareceria John Ford, diretor de cinema amado pelo pai, responsável pelos filmes do seu grande ídolo, John Wayne. A lágrima inofensiva virou um choro-soluço, que eu já desisti de tentar conter: quando é hora dele, eu só abro as comportas e deixo jorrar o misto de tristeza, saudade, dor, pena e revolta – o famoso Luto.

“E qual é o gatilho?”. Eu sei lá.

Teve uma vez que foi um lustrador de sapatos, desses que tem no kit de quarto de alguns hotéis. Sabe qual? Sempre que eu viajava e tinha isso, levava de presente pro meu pai que, como ex-engraxate e apreciador de singelezas e sapatos que demandavam um lustre que era, adorava o mimo. Até que teve a primeira vez que me deparei com um lustrador de sapatos e realizei que não tinha mais meu pai pra levá-lo, e eu chorei, eu chorei com um lustrador de sapatos na mão.

O Luto, não sei se vocês sabem, é meio que nem a maternidade: todo mundo tem um palpite pra dar no seu, na melhor das intenções: “vai passar”, “vai melhorar”, “um dia você vai sorrir”. Sim, claro. Mas agora que estou vivendo e entendendo o que é esse tal de Luto, percebo que ele é que nem impressão digital – não tem dois iguais –  e total vida loka – não dá seta nem sinal de que vai surgir do nada e voltar com tudo.

Existem as datas marcantes, em que o tamanho da falta não é surpresa, um casamento, um nascimento, um aniversário, um Natal, mas a vida é feita amiúde, no banal, no sorrateiro, no rotineiro, no primeiro tchau da janela que não rolou (mas toda vez que saio da casa da minha mãe, aceno lá pra cima e grito “tchau, pai” pra janela vazia), no brinde de todo domingo com uma taça a menos, na foto 3×4 extra do meu filho, que não precisa mais (meu pai adorava “retrato” 3×4), no lustrador de sapatos que não tem mais dono, inclusive, tenho dois aqui pra quem quiser.

O que, portanto, tenho aprendido é que o Luto não é um período. O Luto não é um processo com etapas a serem superadas. O Luto é sentimento eterno. E, como todo sentimento eterno, arrocha e afrouxa. Não-linearmente. Oscilantemente. Repetidamente. Inadvertidamente. Uma doença, dessas que você tem pra sempre e ora tá melhor, ora tá pior. Uma rinite na alma.

Por isso, quanto menos você luta com o Luto, melhor. Não, “aceita que dói menos” não se aplica aqui, porque às vezes dói pra caramba. Mas a tristeza não me assusta, especialmente agora, que descobri que a alegria também não (já fui de afugentar alegria). O fundo do poço não é um destino. É um pouso temporário e intermitente. Pouso lá sempre que meu coração pede recolhimento e meu estômago pede pra chorar.

Meu pai morreu em consequência da Covid e da demora na vacinação. Foram cinco cruéis meses de UTI.  Quando assimilei que estava numa luta com muitos rounds, a ser vencida ou perdida por pontos, realizei que o único jeito de tomar essas porradas era todo dia lutar um pouco e viver um pouco. Só que chega uma hora que você sabe que está numa luta a ser perdida. E é muito louco esse Luto que já é sem ainda ser, um Luto extraoficial, que já destroça seu coração, mas você ainda tem que botar o filho pra escola, ver se o iogurte na geladeira tá vencido, pedir um quilo de patinho moído, sem gordura, e falar da pessoa no tempo verbal corrente. “Papai melhorzinho hoje”. Até que papai não tava mais.

Quando não podemos mais falar de alguém no presente, os tempos verbais tornam-se nossos aliados – ou algozes. Pode-se sempre invocar o passado, e este, talvez, seja um tempo mais fácil de digerir. o passado é o tempo da saudade, mas é o tempo do que foi. Empregar o futuro do pretérito, por sua vez, é conjugar a falta e o pesar. O futuro do pretérito é o tempo do que seria, mas não será. Isso tudo que seria, mas não será, é o que arde que nem picada de saúva – o futuro do pretérito que não chega a ser presente e jamais será uma história bonita do passado.

Desde que meu pai morreu, eu nunca mais falei “força!” pra alguém que perdeu alguém. Força porra nenhuma. Fraqueja aí. Eu, agora, só falo “respira”, porque senti na pele que parece que falta o ar.

Se você tem Luto, eu te desejo liberdade pra sofrer, anos depois, como no primeiro dia, e pra passar dias perfeitamente alegres, como se Luto não houvesse.

não tenho medo do escuro
mas deixo
as luzes
acesas

 

Su Amélia é fia do Rondes. No presente, pra sempre.

Publicitária e escritora, tem dois livros publicados e escreve abobrinhas no instagram @su_amelia.