Esse projeto é um convite para quebrar o tabu. Um canal de inspiração e de informação para quem vive o luto e para quem deseja ajudar

‘After Life’: o luto sem filtro e politicamente incorreto de Ricky Gervais

Cynthia Almeida conta como “After life" trafega muito bem pelos estágios do luto, que não obedecem a uma certa cronologia nem percorrem trilha definida.
Ricky Gervais em cena da série “After Life”, da Netflix | Imagem: Divulgação

Texto originalmente publicado na coluna Vamos Falar Sobre o Luto no UOL

 

“After Life”, a série, parte do ponto cinza em que luto se inicia: sobreviver a uma grande perda. Ao longo de 18 episódios, obedece o vai e vem dos ciclos caóticos do processo, temperados pelo humor ácido, a raiva e o desencanto com a vida do personagem central, Tony, cuja mulher, Lisa, morreu, vítima de um câncer.

Alguém pode estranhar o fato de o politicamente incorretíssimo Ricky Gervais, ator, diretor, roteirista e comediante genial, estar à frente de uma obra tão sensível e comovente como “After Life”. Mas, na verdade, é exatamente o olhar iconoclasta de Gervais que garante o necessário realismo que faz tanta falta na maioria das produções de ficção sobre o tema.

Desde o já épico episódio do comediante Chris Rock sendo estapeado pelo ator Will Smith na cerimônia do Oscar, por conta de uma piada desrespeitosa, as pessoas discutem o que faria Gervais nessa situação. Não sei se ele faria piada com a doença da mulher de Smith, Jada Pinckett Smith, —talvez sim, se achasse engraçada. Mas sei que é exatamente por não reconhecer limites para o humor que criou e protagonizou uma série tão relevante (uma das mais vistas no mundo todo, na Netflix) por tratar o luto com uma crueza sem filtro.

Para começar, Gervais desmistifica a condição do herói enlutado. Seu personagem é insuportável: não se importa a mínima com quem quer acolhe-lo, o sofrimento não o redime do mau humor permanente nem o eleva espiritualmente à altura do grande amor perdido. É apenas um homem devastado, que não vê sentido em continuar vivo num mundo sem a mulher. “Eu prefiro estar em lugar nenhum do que em algum lugar sem ela” é a frase com a qual justifica suas tentações suicidas.

Tony é repórter de um pequeno jornal, que cobre o cotidiano singelo da cidadezinha inglesa onde vive. A bizarrices que permeiam a pauta de variedades do tablóide (como a notícia de uma infiltração na parede da casa de um morador que forma o rosto do ator Kenneth Branagh) se confundem com a banalidade da sua vida “após a morte”. Difícil não identificar nessa analogia a real experiência do luto: depois de uma grande perda, tudo parece se resumir a um roteiro supérfluo e sem sentido, em que não se reconhece nenhuma razão para seguir em frente.

“After life” trafega muito bem pelos estágios do luto, que não obedecem a uma certa cronologia nem percorrem trilha definida. Às vezes, parece que a saída da caverna escura está próxima, mas então um gatilho qualquer o faz voltar muitas casas.

Através de dezenas de vídeos caseiros que o personagem gravou com a mulher, que vê e revê constantemente, somos conduzidos para o único lugar que parece pacificar seu coração: as memórias felizes de um tempo que não vai voltar. A armadilha de mergulhar no mundo bom e conhecido de antes é barrar o contato com o atual, muito mais inóspito. É o estágio looping, em que só desejamos aquilo que não há mais.

É na terceira e última temporada que finalmente o personagem se decide pela vida. Ao melhor estilo Gervais, Tony cai na gargalhada quando assusta, com uma buzina estridente, o seu cunhado/patrão, que despenca de cima de uma escada sobre caixas de papelão: “Viver ainda vale a pena!”, comemora.

Uma das suas raras conexões, a viúva Anne, cujo marido é vizinho de lápide de Lisa, é a voz mais ouvida, justamente pela identificação pelo humor e empatia, sem moralismo ou imposições. É a pessoa que ele escolhe deixar entrar e que o ajuda a escolher viver. Pela porta aberta, chegam outras, que o fazem olhar para fora do abismo em que caiu.

O sinal de que um processo de luto segue um curso positivo é quando a gente deixa de ser a dor, e passa a sentir a dor. E entender que o luto não é só desespero. Pode ser alegria, pode ser bondade, pode ser esperança. “A felicidade é maravilhosa. Tão maravilhosa que não importa se é sua ou não”, diz Anne. Conseguir, em algum momento, vislumbrá-la é sair do looping. Leva tempo, suor e lágrimas. Com sorte, se chega lá.

“After Life” está disponível na Netflix.