Inspiração - Belas Histórias
“Ser mãe talvez seja a experiência de morte mais próxima à vida”

“No momento mais feliz deste ano, fui ao show do Gil com minha mãe. Chorei em diversos momentos, impactada pela força monumental deste artista-rei que canta aos nossos corações há décadas, músicas que são declarações de amor para a humanidade, tão carregadas de história, de luz, comunhão. Em uma das minhas preferidas, ele me lembra que se eu quiser falar com Deus, tenho que aceitar a dor. Choro emocionada por concordar tão profundamente com esse verso. Poucos dias depois desse espetáculo maravilhoso – eu ainda usava a camiseta comprada no dia do show – me reencontrei com a dor durante um exame de ultrassom de rotina desta que é a minha terceira gestação. Faltam poucos dias para o dia das mães. O chão se abriu. Hoje, tomada pelo luto, decido que ser mãe talvez seja a experiência de morte mais próxima à vida. Morremos e renascemos e parece não haver limite para essas reencarnações.

Tem início na gravidez, que é esse estado de se desfazer lentamente da própria vida, deformar o corpo, dividir oxigênio, sangue, nutrientes, abrir espaços viscerais para gerar um outro ser e, no processo, permitir-se tornar vulnerável, entrar em contato com uma outra camada da existência e buscar entender: o que acontece comigo agora? Com aquele corpo em que vivi a vida toda? Durante meus dois partos, experienciei esse sacrifício particular para dar passagem aos meus filhos. Senti meu esqueleto se quebrar, meus órgãos se romperem, senti que ia morrer e, de fato, morri. Mas renascer com um bebê nos braços (embora não seja tarefa fácil) é o mais próximo que se pode chegar do sentido da vida. Por falta de repertório, chamamos de amor. Envolve bem mais: dor, doação, serenidade, coragem, raiva, persistência, abertura. E é só o início, eu não sei como termina. Penso na minha mãe e em como ela teve de renascer à força quando perdeu seu filho – meu irmão – tão precoce e subitamente. Meu primeiro contato com a morte. Hoje percebo o quanto me marcou o fato de ter sido minha mãe a perder seu filho, bem mais do que eu mesma ter perdido meu irmão. O quanto me impactou assistir minha mãe morrer em vida e reencarnar lentamente, tempos (anos?) depois. Em nenhum momento repensei a ideia de ser mãe, pra mim era o óbvio, uma espécie de superpoder humano – viver de mãos dadas com a morte, e ainda assim, permanecer e criar – como escolheria outro caminho? Se eu quiser falar com deus…

Escrevo com o útero hipertrofiado, que carrega um pequeno embrião sem vida, resultado de um aborto retido. Não deu tempo de saber se era uma menina. Aguardo o tempo do corpo que tem seu processo de elaboração do fim, ainda sinto alguns enjoos do primeiro trimestre e um cansaço que não sei se vem dos hormônios residuais que circulam confusos ou da morte que ainda não desgrudou de mim. Acho que ser mãe é também aprender a conviver com a dor iminente da perda, são muitos lutos ao longo do trajeto. Esse é mais um. Acolho a tristeza, penso em tudo aquilo que não será mais, os planos, os nomes que tínhamos escolhido, os irmãos radiantes pela nova chegada, as mudanças na casa, os seios cheios de leite, os cheiros e a textura dos recém nascidos, o meu corpo que agora precisa esvaziar-se. Morrer e renascer. De novo e de novo.
Neste dia das mães desejo que eu possa descansar em meu corpo, um pouco mais em paz com a dor, mais próxima de deus e dos meus pequenos, que são o sentido de tudo. Sinto vontade de agradecer às que vieram antes de mim, sem elas eu não poderia escrever sobre minhas dores.”
Por Luisa Taborda