Esse projeto é um convite para quebrar o tabu. Um canal de inspiração e de informação para quem vive o luto e para quem deseja ajudar

Histórias inspiradoras que nos ajudam a viver com quem já partiu

Ouvir, assistir e ler histórias que tratam do luto é de certa forma conviver com nossos mortos queridos e resgatar o significado e a importância de sua memória na nossa vida

Por alguma razão intangível e muito bem-vinda (a pandemia, talvez?), a morte e o luto saíram do armário de poucos anos para cá e passaram a ocupar seu justo e imenso lugar nas livrarias, cinemas, streaming. São tantas as obras e tão ricos e diversos os olhares e reflexões que promovem que vamos trazer aqui sempre uma seleção do que mais tem nos impactado.

Rita Lee – Mania de Você
(2025, disponível na Max)
Produzido quando a artista ainda vivia até o período em que a doença se agrava, em 2023, o documentário dirigido por Guido Goldberg e produzido pela Max tem o envolvimento muito próximo e emocionado dos três filhos e do marido, o que dá à obra um tom intimista (com muitos filmetes e imagens domésticas) de álbum de família. O roteiro ignora seu início com os Mutantes, em plena Tropicália (a produção não teve a autorização dos ex-parceiros Sergio e Arnaldo Dias), e começa já em sua carreira solo de roqueira com a banda Tutti Frutti para então seguir com a parceria que se prolongaria até o final com o parceiro de música e vida, Roberto Carvalho. A história percorre a trajetória genial, única e inédita da super estrela pop, sua carreira, sucesso, maternidade, relação abusiva e recorrente com as drogas até a redenção final à sorte de um amor tranquilo. Ao tratar da finitude, inclui um momento comovente e singelo: a leitura das breves cartas de despedida que deixou para cada um dos quatro homens da sua vida, os filhos Beto, João e Antonio e o marido Roberto. E nos brinda com uma declaração genial da rainha Rita Lee: “A morte não é um castigo, a morte é voltar para casa. Onde você estava antes de nascer”.

Rita Lee, Globolivros, 2023, R$ 69,90

Rita Lee – Outra Autobiografia
Nesta segunda parte da sua autobiografia, Rita Lee fala sobre a descoberta do câncer, sua mobilização pela cura e do enorme sofrimento do processo por uma esperança de cura. Em nenhum momento perde a franqueza , o humor (às vezes doído, negro) ou o espírito transgressor que a acompanhou em toda a sua história. O livro é sua despedida e também uma declaração de amor à vida.

All There Is
Podcast de depoimentos e entrevistas sobre o luto pelo jornalista da CNN, Anderson Cooper (3 temporadas, disponíveis no Spotify)
A partir de sua própria experiência de luto (o âncora norte-americano perdeu o pai, depois o irmão por suicídio e a mãe), Cooper estabelece uma conexão profunda com os seus entrevistados e traz experiências e reflexões emocionadas sobre o tema. Um dos depoimentos contundentes da série que já está em sua terceira temporada foi o episódio com o apresentador e comediante Stephen Colbert, que, aos 10 anos, perdeu o pai e dois irmãos em um acidente aéreo. Colbert conta a sua história e nos faz compreender que, mesmo diante da tragédia, podemos um dia ser gratos àquilo que de pior aconteceu em nossas vidas. “Se nos orgulharmos e gostarmos de quem nos tornamos a partir do que vivemos”, sugere, “podemos olhar sobre o que enfrentamos sob uma nova perspectiva e agradecer por aquilo que nunca desejamos ter vivido. O luto, essa coisa que mais evitamos sentir – eu diria que muitas vezes fechamos essa porta com a raiva, que na verdade nao é uma emoção. A raiva é uma armadura contra o que realmente sentimos. Mas se você puder compartilhar suas histórias, e lidar com seu luto por meio dessas narrativas, então isso transforma a caverna em um túnel e há um caminho para o outro lado, acrescenta oxigênio à sua vida.”

Annie Ernaux, 2023, Fósforo Editora, R$ 47,50

A Outra Filha
Este livro da autora genial ganhadora do Prêmio Nobel de Literatura trata da descoberta da existência de uma irmã que nasceu e morreu antes dela e cujo nome e vida foram apagados da família, mas cuja ausência ocupou um espaço imenso em sua história. Aos 10 anos, Annie, filha única, descobre por acaso que teve uma irmã, que a antecedeu, morta de difteria aos 6 anos. Nem naquele momento, nem nunca mais ela comenta nada sobre a existência dessa irmã com os pais. O livro emociona e revela todas as camadas que a ausência de alguém que até então desconhecíamos pode definir nossa própria existência. Não há afeto nessa constatação, ou talvez haja, oculto porém por espessas partes de raiva, inveja, desolação. Como toda a escrita rascante e genial de Ernaux, o que ela nos traz é a beleza crua de um relato sem romantismo.
“Não escrevo porque você morreu. Você morreu para que eu escreva, eis aqui uma grande diferença”.

Sandro Veronesi , Autêntica Contemporânea, 2024, R$ 56,37

O Colibri
O autor, ganhador do prêmio Strega (e um dos nomes já confirmados para a FLIP, que acontece de 30 de julho a 3 de agosto deste ano, em Parati, RJ) conta a saga de um homem comum, Marco Carrera, permeada, como a maioria das vidas comuns, de perdas definidoras. Não é um livro sobre o luto e sim sobre como morte e vida estão absolutamente entrelaçadas. Não apenas uma vez, mas muitas vezes.
“E ele descobriu que realmente era alguém marcado, abandonado por Deus, muito, mas muito mais do que acreditava, e já acreditava sê-lo bastante, desde a época da morte de sua irmã Irene, e veio o telefonema que todos os pais temem, mas apenas poucos recebem, poucos desafortunados, marcados, predestinados, para os quais, em inúmeras línguas não existe nem mesmo um nome…”

Han Kang, Todavia, R$ 64,90 e R$ 49,90 em e-book

O Livro Branco
A autora sul-coreana ganhadora do Nobel de literatura de 2024 traz a cor que simboliza o luto em seu país para uma obra tão delicada quanto poética que trata da morte da irmã, com apenas duas horas de vida, e seu impacto na sua própria história, ou como cita “de como nasci e cresci no lugar da morte dela”. Kang nos traz imagens belíssimas e fortes e a gente caminha por sua narrativa com a dor e a leveza do cenário branco.
“Por fim, deu à luz. Sozinha, cortou o cordão umbilical. Vestiu a roupa que acabara de fazer naquele corpo pequenino manchado de sangue. Por favor, não morra. Com uma voz fina, ela murmurava sem parar. Ao mesmo tempo, abraçava a bebê do tamanho de um palmo que chorava. Depois de uma hora, as pálpebras da bebê, que a princípio estavam bem fechadas, abriram-se como se fosse mentira. Seus olhos encararam aqueles olhos pretos e ela murmurou outra vez. Por favor, não morra. Cerca de uma hora depois, a bebê morreu. Deitadas lado a lado, ela acalentou no peito a bebê morta, sentindo aquele corpo esfriar aos poucos. Não derramou mais nenhuma lágrima (…)
A vida não é particularmente gentil com ninguém. O granizo cai enquanto ela caminha sabendo desse fato. Granizo que molha a testa, as sobrancelhas e as bochechas. Tudo passa. Ao andar, ela se lembra de que, no fim, tudo que você agarra usando todas as forças vai desaparecer. Enquanto isso, o granizo cai. Não é chuva nem neve. Não é gelo nem água.”

Thiago Camelo, Companhia das Letras, 2022, R$ 79,90

Dia Um
A narrativa autobiográfica do autor é tão vertiginosa quanto a queda do irmão que, aos 41 anos, se lança do apartamento em que morava em Copacabana, no Rio de Janeiro, onde morava. O relato, apesar de detalhado e cronológico (a partir do dia 1, como diz o título) não define exatamente a doença que o impulsiona ao suicídio. A prosa na segunda pessoa dá, sem perder a intimidade, uma certa distância ao autor, que mergulha no luto pelo irmão com intensidade e crises recorrentes de ansiedade. Um dos aspectos mais interessantes desta narrativa são as confissões muitas vezes embaraçosas e camufladas em torno do que fica depois da morte: a culpa, o alívio que gera mais culpa, a vergonha do que não foi dito, a saudade do que não aconteceu mas poderia ter acontecido e, talvez, gerado um final diferente.

Camila Maccari, Class, 2022, R$ 59,80

Dias de Fazer Silêncio
Maria é uma menina de 12 anos cujo irmão, um ano mais novo, é acometido por um câncer agressivo e morre em dois anos. Esse percurso de tempo, que parece interminável aos olhos de uma criança, agrega todos os lutos imagináveis da situação: o da perda da infância, da mãe, da família como a conhecia e de si mesma. Imersa em culpa (por que ele e não eu?) sonha que a morte dele chegue logo para acabar com o suplício. Ela agora é a cuidadora de si mesma e da própria família que não reconhece mais. Um livro lindo e tocante que fala das muitas mortes que há em cada morte e joga luz sobre o sempre subestimado luto dos irmãos.