Inspiração - Belas Histórias
“Ajudar a salvar vidas apagou o meu desejo de vingança”

Meu irmão morreu depois de ser atropelado pelo patrão. Um rapaz que estava no banco de trás do carro — um colega da fazenda — foi com ele para o hospital e me contou como tudo aconteceu. O Caubói (esse era o apelido do meu irmão, que se chamava Cleusmar) estava na estrada, de bicicleta, voltando para casa depois do serviço. O fazendeiro e esse rapaz tinham ido à lavoura e, na volta, encontraram com ele no caminho. O rapaz contou que meu irmão se colocou fora da estrada, dando passagem para o carro, mas o patrão virou o volante na direção dele e acelerou até passar por cima. O corpo ficou preso no para-choque da frente e o homem continuou acelerando, até o Caubói escorregar e cair debaixo do carro. Foi muito doloroso ouvir isso. Eu ficava imaginando o que ele deveria estar pensado naquele momento. Essa cena era o que mais me deixava nervoso e revoltado. Depois fiquei sabendo que, uma hora antes, os dois tinham discutido. O Caubói estava consertando um triturador que tinha quebrado, o fazendeiro não gostou. Outros empregados disseram que ele, o patrão, já chegou bravo. Xingou a nossa mãe e os dois brigaram feio.
Recebi a notícia do atropelamento logo que aconteceu. Minha cunhada ligou para a irmã dela, e essa irmã me ligou. Eu trabalhava numa outra fazenda. Foi tudo muito rápido. Ela me avisou que meu irmão estava sendo levado para a cidade, numa ambulância, e eu já peguei o carro. Quando cheguei, ele também tinha acabado de chegar. Já estava morto, mas eu não conseguia acreditar porque encostava no corpo e estava ainda quente. Mas coisa de cinco minutos depois já estava gelado. Tive que me afastar para resolver a papelada da perícia. Em choque. A gente era muito ligado. Perdemos nossos pais muito cedo, o Caubói era a minha família. Um cara da paz, alegre, que gostava de juntar as pessoas.
A Justiça decidiu que o que aconteceu foi um acidente. A palavra do patrão foi a que valeu. Eu só pensava em vingança. Pedi para minha esposa ir embora de casa e comprei uma arma. Queria ficar sozinho porque, na verdade, meu plano era tirar a vida do assassino e depois tirar a minha. Minha esposa é indígena, eu falei que queria me separar e pedi que ela deixasse a cidade e fosse morar na aldeia com os parentes. Eu tinha medo de que a outra família buscasse vingança também e fizesse algo com ela. Quando chegou o dia de executar o plano, carreguei a arma com 15 balas. Ia saindo pela porta e dei de cara com uma mulher que eu conhecia pouco, e que nunca tinha ido à minha casa. Ela barrou minha saída e conversou comigo. Disse que teve um pressentimento e resolveu ir até lá. Naquela época eu dizia que não acreditava em Deus, mas hoje entendo que esse encontro foi um milagre. A partir desse momento outros evangélicos começaram a me procurar. Algo parecia dizer a eles que deviam me dar conselhos, me desencorajar da vingança. Eu não sou evangélico, mas acho que Deus me mandou um recado. Essas pessoas repetiam: “Deus está contigo. Não pense em vingança. A melhor vingança é a vingança de Deus”. Depois de um tempo, o patrão perdeu um filho num acidente. Eu já nem queria mais o mal para ele. Aquele ódio todo durou uns dois, três anos. Aos poucos fui conseguindo ficar em paz.
Veio meu filho, que foi uma motivação muito forte. Minha esposa voltou para casa e logo engravidou. Um ano e pouco depois da morte do Cleusmar, o Iuri nasceu — no dia 19 de janeiro, logo após o primeiro Natal sem a presença dele. Eu pensei: “Ah… Deus me tirou um, mas me deu outro”. Depois veio a minha filha.
Outra coisa que me ajudou foi conseguir um trabalho no Xingu, como motorista do posto de saúde. Entrei no Xingu ainda muito, muito mal. A floresta me fez bem. Antes eu era um cara que trabalhava na lavoura, que é só destruição. No Xingu, você se senta à beira do rio, vê a água correndo, ouve os passarinhos… Tem tempo e tranquilidade para pensar. É uma coisa bonita perceber que, se tem um bicho, quase sempre tem outro junto. Os bichos também têm família. Na floresta, aprendi que a vida tem valor. A vida é importante. E com os médicos e enfermeiros, pude ver que ela pode acabar num segundo.
Também aprendi o que é parceria. No mundo indígena, se alguém está doente, todos vêm ajudar, se preocupam, trazem remédio, comida. Todos os indígenas se chamam de parentes — são uma grande família! Conheci também pessoas diferentes, gente de fora que veio prestar serviço. Isso abriu minha cabeça. Na saúde, éramos uma equipe. Eu era o motorista, atendia emergências, buscava e levava quem tinha sido picado por cobra, mulheres em trabalho de parto… Passava temporadas na floresta, morando com o povo Kaiabi, que me acolheu muito bem. Quinze dias lá, depois quinze na cidade. Às vezes eu estava em Canarana, de folga, e precisava sair de madrugada e ir para a reserva por causa de alguma emergência. Dirigia 500 quilômetros debaixo de chuva, viajava a noite inteira, pegava barco… O Xingu é longe, mas eu fazia esse caminho feliz, porque ajudar outras pessoas é muito bom. A vontade de salvar vidas foi apagando aquela ideia de morte e vingança.
Dizer que perdoei quem matou meu irmão seria mentira. Mas entendi que alimentar esse ódio não traria o Caubói de volta. Só me daria dor de cabeça e mais problemas. A dívida desse homem é com Deus. Eu decidi me concentrar em mim. Meu irmão partiu, e agora é comigo, é sobre a minha imagem e a minha alma. Não quero que a minha alma seja manchada pela maldade de uma outra pessoa — uma pessoa ruim. Me concentrei na minha família, nos meus planos para o futuro. Faz um tempinho deixei o trabalho com o pessoal da saúde e abri a minha empresa de frete. Trabalho principalmente com o Xingu, mas num outro esquema.
Claro que sinto muita saudade do Cleusmar. Mas sonho com ele toda semana, no mínimo, duas vezes. E não é qualquer sonho! Quando sonho, sinto que recebi uma visita dele. Que ele esteve realmente ali, comigo. Ah, e eu adoro falar sobre o meu irmão porque isso também traz a presença dele. Obrigado por me escutar.