Inspiração - Belas Histórias
“Quando meu irmão morreu, apagaram tudo dele: fotos, roupas, lembranças.”

Quando morre um jovem ou uma criança, o impacto da sua perda sobre a família é, geralmente, mais devastador sobre os seus pais. Se houver um irmão ou irmãos, eles terão, mesmo que de forma involuntária, sua dor deixada em um segundo plano. Não é nada fácil. Mesmo que essa hierarquia do luto seja, de certa forma, compreensível, ela torna injusto e solitário o lugar que o irmão sobrevivente vai ocupar no novo cenário em que a morte precoce do outro o obrigará a habitar.
Com a intenção de refletir sobre esse luto subestimado, fui conversar com a jornalista e fotógrafa Carol do Valle que, aos 18 anos, perdeu um irmão, o Paulo, de 26, vítima de um acidente de automóvel. Caçula de 7 irmãos, Carol vivia em Florianópolis com os pais e o Paulo – os demais, mais velhos, já haviam saído de casa. A morte súbita e trágica provocou, como era de se esperar, um ponto de virada em toda a família. “Minha mãe nunca mais foi a mesma”. Carol conta que, de temperamento mais introspectivo e calado, a mãe mergulhou então numa espiral depressiva que a acompanhou durante toda a sua vida.

Quando Carol, hoje com 59 anos, me contou como toda a família lidou com a morte do irmão, eu entendi que, no seu caso particular, o tema ia além do luto subestimado. Foi um luto silenciado. Por alguma razão que nem mesmo ela sabe explicar direito, a família optou por uma espécie de apagamento da memória do morto querido. “Sumiram com todas as suas fotos, doaram todas as roupas e objetos, nunca mais se falou dele em casa. Foi como se ele nunca tivesse existido”.
Pergunto como era o vínculo que ela tinha com Paulo e ela me conta que, apesar dos 8 anos de diferença de idade, eram muito, muito próximos. “A gente andava sempre junto, passeávamos de moto, as pessoas até achavam que éramos namorados”. Sua partida deixou um buraco gigante que desestruturou toda a família. Carol conta que chorou por muito tempo. Ia para a casa da melhor amiga na época e chorava. Em casa, não compartilhava as lágrimas com os pais; lembra de só conseguir falar com um dos irmãos, o José, que, um ano mais velho que Paulo, era muito próximo dele e foi um dos mais impactados pela dor da perda.

Ninguém mais falou sobre Paulo, mas tudo mudou na família a partir da sua morte. Não se festejou mais o Natal ou o ano novo, nunca mais houve uma festa familiar. “O que eu me recordo de ter entendido na época é que o curso natural da vida, esse em que a gente acha que os mais velhos vão partir primeiro, na verdade não existe, e isso, de certa forma, mudou a minha compreensão sobre a existência. Lembro também que, por muitos anos, eu sonhei que o Paulo fugia de nós. E quando finalmente o encontrávamos, ele não nos reconhecia mais. Tive esse sonho recorrente por muito tempo”.
“As pessoas sentem tanto pavor da dor e a morte é um tabu tão grande ou causa uma impotência tão enorme que as pessoas ‘escolhem não lidar’, assim parece mais possível viver”, explica a terapeuta especializada em luto Valéria Tinoco, do Instituto 4 Estações. Valéria diz que, antes de mais nada, a gente deve entender que as famílias fazem aquilo que é possível para elas, e que não se pode julgar sua atitude. “Às vezes”, diz, “a morte paralisa de tal forma e é tão insuportável que a única maneira de viver é não olhar para o assunto.”
O que ocorre a partir dessa decisão é o que os psicólogos definem como “luto inibido”, que pode ficar guardado para sempre, ou “luto adiado”, aquele que em algum momento da vida vai se manifestar. As consequências de um ou de outro são a impossibilidade de quem fica prosseguir com a vida na integridade. “Além da perda do irmão, o sobrevivente tem que lidar com a perda da memória desse irmão”, diz Valéria. “Quando você apaga a morte, você também apaga a vida e a parte da sua história vivida com ele também é ceifada.”
Carol não teve mais acesso às imagens do irmão morto. Apenas recentemente, depois da morte dos pais, encontrou algumas poucas, que publicamos aqui. Na nossa conversa, comento que é curioso que, depois de ter essas imagens interditadas na sua história, ela tenha se tornado fotógrafa. E que o projeto que está desenvolvendo neste momento trate justamente de fotos das suas antepassadas (tetravós e avós desde o final do século 16, imagens que chegaram até ela através de um álbum de família, cujas histórias vem buscando recuperar para compor um livro).
Ela me responde que nunca havia feito essa relação desse projeto com o luto do irmão e conta outro fato que marcou sua vida a respeito de imagens de família. O pai, Dylton do Vale Pereira, falecido em 2020, era fotógrafo amador e tinha um extenso arquivo guardado em casa, com o trabalho de toda uma vida. Esse material, ou quase todo, foi destruído, pouco antes da sua morte, por uma das suas filhas, que queimou seu acervo na churrasqueira da casa, sob a alegação de que o acervo estava danificado pela umidade e mofo. Carol ficou inconformada com a queima das cópias e negativos e se empenhou em resgatar o que restou do material entre as cinzas. Da sua experiência de “escavação” dos restos, surgiu um lindo trabalho fotográfico que rendeu uma exposição com o título “Metamorfose”.
“A perda desorganiza a vida e o luto é uma tentativa de reorganizá-la. Quando ela recupera as fotos e as refaz de forma artística, ganha essa possibilidade de organização. Que bom ela ter os recursos para isso”, diz Valéria.
Há 8 anos, Carol perdeu outra irmã, Jenny, que, aos 62 anos, teve uma morte repentina por embolia pulmonar. Nessa altura, a mãe já havia falecido e o pai era bem idoso. A reação da família de não falar sobre o assunto foi semelhante à do irmão, muito tempo antes.
“As experiências com o luto são particulares e múltiplas”, diz a pesquisadora de imagens e memórias das práticas do luto, Carolina Junqueira, quando eu pergunto qual é sua visão sobre a tentativa de apagamento e recuperação por outras vias. “Devemos”, diz, “antes de mais nada, tentar escapar da armadilha de falar sobre o que é certo e errado. Não julgar”. Posto isso, a estudiosa pondera que, mesmo que se tente apagar os restos como uma forma de fazê-lo deixar de existir, essa é uma tarefa impossível. Algo que existiu deixa marcas indeléveis. Talvez essa tentativa tenha impulsionado a irmã a ir na direção de recompor os “restos” apagados através de seu trabalho.
O resgate das cinzas e o mergulho na história das antepassadas foram a forma de Carol, mesmo sem saber, reviver os mortos queridos através da arte. Eles continuam a existir.