Inspiração - Belas Histórias
“Que me acorde ou que me mate”

Uma semana na UTI. Minha mãe variava entre a lucidez indignada com o que estava acontecendo e a sonolência cada vez mais desnorteada.
Nunca dormíamos bem. Nas noites que passei com ela no hospital, as luzinhas e apitinhos incessantes não deixavam a gente descansar, uma tortura. O entra e sai de enfermeiras, os acessos que dificultavam toda e qualquer posição e a insistência em trazerem comida, quando o corpo dela já não suportava mais nada, só inchava cada vez mais. Os olhos estavam amarelando, o fígado morrendo.
Minha mãe teve um câncer de mama com metástase óssea e hepática. Uma das imagens mais fortes desse período no hospital: eu deitada na poltrona ao lado da cama dela, esperando pela sua morte e sentindo algo insuportável. Em algum momento nos últimos dias, em uma fresta de lucidez, minha mãe me pediu que a acordasse ou que a matasse. Aquilo tudo estava sendo insuportável para ela também.
Acompanhar a morte de alguém é brutal. Acompanhar a morte da minha mãe foi brutal para mim.
Conforme a semana foi passando, fomos aos poucos, cada uma à sua maneira, percebendo que a doença ganhava força e a morte era certa, apesar de ser impossível prever quando aconteceria. Em dado momento, começamos uma corrida para conseguir levá-la de volta para casa, onde ela poderia morrer com mais conforto, sendo acompanhada por uma equipe de cuidados paliativos, mas não deu tempo. No final da madrugada de uma quarta-feira, enquanto estava inconsciente por conta de medicações, ela morreu. Minha irmã dormia ao seu lado.
Queria muito ter estado presente no momento da morte da minha mãe, mas também não queria. Queria ter acompanhado isso e queria muito ter poupado minha irmã desse momento, mas também agradeço por ela existir e por ter estado lá enquanto eu descansava em casa. Confio na força da minha irmã para ter sido quem primeiro encontrou nossa mãe morta, mas também lamento por ela ter passado por isso.
Liberar o corpo
Meu marido me acompanhou nos procedimentos pós-morte do hospital. Fomos mandados de um lado para o outro, ninguém nos orientava direito. Acabamos em uma salinha subterrânea, sentados numa mureta esperando pelo corpo da minha mãe. A salinha contrastava com toda elegância das outras instalações: era apertada, com a pintura descascada, o piso sem acabamento, não havia assentos. Tinha algo de porão, de escondido. Esperamos alguns minutos até que apareceram dois ou três funcionários do hospital e uma maca de metal carregando um corpo deitado, inerte, dentro de um saco preto com um zíper frontal. Apresentei meu documento, anotações foram feitas em uma prancheta e o zíper foi aberto.
Observei o rosto da minha mãe contraído, tão diferente do que eu havia visto pela manhã, quando a morte era mais recente e a rigidez do corpo ainda não era forte. Eu disse “é ela”. Eles anotaram na prancheta. Eu toquei o rosto dela, fiz perguntas práticas sobre a rigidez da boca, dos olhos e do pescoço, quis saber como fariam para a expressão ficar melhor para o funeral. Eles não responderam de pronto, mas depois de uma pausa acabaram por dizer que a funerária cuidaria disso. Como?
Não pude evitar imaginar os manejos que envolveriam força física contra o corpo travado da minha mãe.
Escrever com música
Agora faço uma cisão nesse texto e mudo de assunto: quero falar do papel da música na construção desse pequeno relato – fragmento de um texto maior – que só pude escrever depois de alguns meses e, principalmente, depois de ser atravessada por algumas músicas.

Quando minha mãe morreu, a sensação era a de não ter palavras, de não ter como contar o que aconteceu e estava acontecendo. A linguagem escrita era impossível. Foi quando escrevi sobre o que eu vivi através da música. Não compondo música, mas compondo uma lista de músicas que serviram de boia de resgate para mim.
Esta lista é aberta. Convido a todos a incluírem faixas nela através deste link . Músicas importantes para algum luto pessoal ou algo que esse texto suscitou. Seja o que for, agradeço a cada um dos envios e gosto muito do resultado colaborativo que está se formando.