Inspiração - A gente indica
The Bear: uma série caótica e delicada sobre vidas e lutos
À primeira vista, parece mais um conteúdo do audiovisual sobre chefs famosos e bastidores de restaurantes de luxo. Ainda que eu goste da temática, The Bear por acaso acontece entre panelas e pratos sofisticados. Eu amei a série e quis ouvir a Cauana Mestre, psicanalista e excelente crítica de séries e filmes (se você não a conhece, segue lá), sobre The Bear antes de trazê-la para cá. Então hoje vou trago minha perspectiva e alguns aprendizados a partir da conversa com ela 😉

Lançada em 2022 no Star+ (hoje parte da Disney), The Bear já ganhou 4 temporadas e 38 episódios, todos disponíveis. “Após a morte repentina do irmão, Carmen “Carmy” Berzatto — um jovem chef premiado do mundo da alta gastronomia — retorna a Chicago para comandar a modesta lanchonete da família, The Original Beef of Chicagoland. Lá, ele enfrenta um ambiente caótico, dívidas, funcionários resistentes e o luto mal resolvido, tentando transformar o negócio e a si mesmo.”
Resolvi escrever sobre The Bear agora, tantos anos depois da primeira temporada, porque a última me arrebatou. Não sou de maratonas, mas assisti tudo em dois dias e muito chorei por identificar ali, naqueles 10 episódios, movimentos gigantes e vitórias de personagens bem afetados. É claro que não posso recomendar a ninguém que ‘pule para a 4a temporada’ – é preciso assistir a todas para ter essa sensação – mas eu adoraria que muita gente que eu gosto chegasse lá também.
Já estamos há 10 anos escrevendo sobre o luto e ‘meus lutos’ são de mais de 15 anos. E algo que me percebo é como quem nunca viveu isso não tem a dimensão de quão longa é a caminhada. Eu diria que é ‘eterna’, no sentido que as coisas melhoram mas aquelas perdas nos afetam por meses, anos, pra sempre. E em The Bear o luto está presente, temporada após temporada, como um pano de fundo que às vezes se releva, outras se esconde, mas nunca desaparece. Pode parecer triste, mas pra mim é um consolo; e é alegre porque os tais personagens são incansáveis e fazem progressos muito bonitos.
A Cauana também recomenda, e muito, a série: “ela aborda o luto de uma forma bem freudiana: evidenciando que se trata de um trabalho psíquico que demanda tempo e muito esforço e que acontece de forma singular para cada um.” E traz a perspectiva dos diversos lutos ali presentes, para além da perda do irmão do protagonista:
“Várias perdas acontecem. Eles perdem aquele restaurante, aquele modo de se relacionar, aquela linguagem familiar (que, aos poucos, vai se alterando). Richie precisa fazer o luto de um casamento, Carmy da relação com Claire. A mãe, Donna, precisa fazer o luto daquele objeto de gozo que era o álcool. E além de tudo isso me parece que cada um está trabalhando arduamente para suportar a perda de uma parcela do sintoma que mantém a cada um deles, de formas diferentes, presos em lugares muito sofridos. No fundo é isso que a gente faz também com a nossa neurose, um trabalho de luto. Por mais que ela nos faça sofrer temos com ela uma relação de intimidade, nos aferramos a ela porque sentimos que ela nos dá um lugar. Consentir com essa travessia é muito difícil, mas os laços de amor nos ajudam muito, como eu acho que a série mostra muito bem.”
Amor é o que não falta em The Bear e o irmão que morreu, Mikey, está em todo lugar. Ele aparece através de flashbacks na história mas também está presente em objetos do restaurante, nas conversas dos personagens, nas memórias de cada um, no tamanho que sua ausência se faz presente.
“O difícil da morte é justamente essa ambivalência, uma vez que, ao perdermos alguém, ficamos com esse alguém dentro de nós. A marca do outro sobrevive enquanto for alimentada, enquanto falarmos sobre ela, pois a existência de alguém é também narrativa, discursiva. O grande trabalho do luto é o de consentir com essa marca e com essa presença sem deixar de investir libido em outras coisas da vida. Isso leva tempo e é sempre importante lembrar que o tempo psíquico não é cronológico e que não há manuais sobre o tempo do luto.”
Imagens reproduzidas da Internet.