Inspiração - A gente indica
O que podemos aprender com povos originários sobre a conexão eterna com nossos mortos queridos

O espírito que veio antes de ti ainda caminha à tua frente.
(Provérbio do povo Dani, da ilha da Nova Guiné).
A citação é a epígrafe do recém-lançado livro “Como Dançar com os Mortos – Uma jornada por cinco continentes em busca da sabedoria ancestral” (Maquinaria Editorial, 2025). O título, como explica o autor, o jornalista Kaíke Nanne, pode ser lido de forma simbólica: uma jornada entre culturas diversas ao redor de todo o mundo, que preservam tradições milenares de seus antepassados. E também pode ser entendido literalmente já que, ao investigar as relações das etnias visitadas com seus mortos, Nanne acompanhou e registrou celebrações fúnebres como o Famadihana, o ritual mais importante para os povos de Madagascar: a retirada dos mortos de suas tumbas para uma dança com eles.
No Famadihana, familiares removem os corpos do caixão entre cinco e sete anos depois do falecimento, embrulham e amarram-os com firmeza em panos artesanais e os dispõem em esteiras de palha. Seus nomes são escritos nos novos panos, num sinal de que sempre serão lembrados, e então agarrados por familiares para a dança. Grupos disputam sua vez de carregá-los e bailar alegremente com eles antes de novo sepultamento. “Aos dançar com os mortos, os vivos se reconectam de modo festivo aos seus predecessores, relembram histórias dos que já se foram e preservam os lanços com a comunidade”, escreve o autor. “O ritual”, explica, “faz com que seus praticantes sintam-se parte de um tipo sólido de eternidade”.

Essa conexão, subjetiva ou literal, com seus mortos, é o fio que une mais de uma dezena de etnias e territórios visitados pelo autor ao longo de 30 anos. O que Nanne trouxe de sua longa e fascinante peregrinação é muito mais do que uma reportagem instigante sobre hábitos e costumes de povos originários dos cinco continentes percorridos – o que por si só já garante uma leitura deliciosa. É a revelação de outra maneira de habitar a fronteira da dimensão terrena e o que há além, muito distinta da nossa, ocidental. É um exercício de auto-conhecimento e humildade que nos permite admitir que há muitas outras formas de entender a finitude e, conseqüentemente, lidar com a dor da perda de nossos entes queridos.
Ao nos apresentar os mistérios do oráculo do Povo das Estrelas, os Dogon, no sudeste do Mali, ou os ritos do longo adeus dos Toraja, na Indonésia, em que os cadáveres são mantidos e reverenciados insepultos em casa por dois anos, a leitura nos conduz a uma jornada espiritual em que o fascínio é maior do que o estranhamento. Seus mitos, deuses, invocações de espíritos através de sonhos, meditação, danças sagradas ampliam de forma espetacular as bordas que nos acostumamos a traçar para dividir o mundo dos vivos e dos mortos.
Pergunto ao autor o que os rituais que ele conheceu representam para a elaboração do luto pela perda de alguém querido. “Eu compreendi que os rituais são fonte de um grande apaziguamento no coração de quem fica” responde. “Em comum, seja a comunidade do Vale do Omerê, no Brasil, ou na Indonésia, Finlândia e Butão, todos comungam da certeza de que quem morreu partiu apenas fisicamente e, em espírito, permanecem presentes.” “Em vários idiomas de povos originários”, me conta, “não há uma palavra que distinga corpo e espírito. Não há separação, não há espíritos entre nós, há pessoas”.
Há a eternidade.