Esse projeto é um convite para quebrar o tabu. Um canal de inspiração e de informação para quem vive o luto e para quem deseja ajudar

Ensinando a morrer

É possível "morrer bem"? Como podemos melhorar o final da vida de um doente terminal? Especialista em cuidados paliativos, a médica Ana Cláudia Quintana Arantes vem ajudando muitas pessoas (e suas famílias) a viverem com delicadeza e amor o momento da despedida
Especialista em geriatria e cuidados paliativos – área que procura melhorar a qualidade de vida de pessoas diante de doenças incuráveis
Ana Cláudia Quintana Arantes é especialista em geriatria e cuidados paliativos – área que procura melhorar a qualidade de vida de pessoas diante de doenças incuráveis

Quem cede a palavra à médica Ana Claudia Quintana Arantes não tem vontade de tomá-la de volta. Ana Claudia é tão sensível, tão carismática, tão cheia de sabedoria e de boas histórias que é possível ouvi-la durante horas e horas e ainda terminar o papo querendo mais. Especialista em geriatria e cuidados paliativos – área que procura melhorar a qualidade de vida de pessoas diante de doenças incuráveis –, ela cuida de seus pacientes (e também dos familiares dos doentes) com uma delicadeza gigante como seu sorriso largo. Os pacientes são muitos (Ana Claudia atende no Hospital das Clínicas, no Albert Einstein e na ONG Casa do Cuidar) e por isso o tempo corre. De uma conversa de pouco mais de uma hora que eu e a Cynthia de Almeida, nossa colega aqui no site, tivemos com a médica resultou a entrevista que publicamos aqui praticamente na íntegra, em três capítulos (este é o primeiro deles). Pouca coisa ficou de fora – simplesmente porque tudo é bom! Com a palavra, Ana Cláudia:

Por que você escolheu trabalhar na área de cuidados paliativos?

Na faculdade eu tive muita dificuldade em ver o sofrimento dos pacientes. Diante de quem estava com muita dor, eu sofria junto. Nos casos em que não havia mais possibilidade de tratamento eu via famílias numa condição de total abandono… Eu perguntava: ‘Não tem mais jeito a doença, mas e a dor dele e da família? Não vão fazer nada?’. E daí vinha a maldita frase: “mas não tem nada para fazer”! Eu não me conformava com isso, ficava insistindo com os professores. Nos ensinam a ver o paciente como um instrumento de manifestação da doença e eu queria ver a pessoa através da doença. Daí fui procurar ajuda psicológica com o pessoal que dava suporte para os alunos. A psicóloga me disse: “você é muito sensível, não pode misturar as coisas”. Eu continuava sofrendo, então decidi parar a faculdade. Fiquei fora da USP seis meses, mas como não conseguia achar outra coisa que pudesse fazer, acabei voltando e consegui terminar. Aí tinha que decidir a residência e, das áreas todas, eu gostava mais de geriatria. Eu achava que alguma aproximação as pessoas idosas deveriam ter com o conceito da morte, que para mim era tão difícil… Vendo o envelhecimento normal, quem sabe eu descobrisse algo sobre ela? Optei pela residência em geriatria. Internavam muitos pacientes com câncer, a maior parte sem condições de tratamento… E eu pegava todos os moribundos. Os pacientes em estágio terminal ninguém quer pegar, já que você não precisa fazer exames, salvar. Na residência eu conheci uma enfermeira que me deu um livro que mudou tudo: “Sobre a Morte e o Morrer”, da Elisabeth Kubler-Ross (leia mais sobre o livro aqui). Naquela noite eu li o livro inteiro e foi… Sabe Moisés quando o mar se abriu? Eu estava me afogando no meu sofrimento, sem saber nem o que procurar, mas ao ler o livro ganhei uma direção: cuidados paliativos.

Por que este livro foi tão importante?

O grande dilema da gente é não saber fazer a pergunta. E se você não sabe fazer a pergunta a resposta não vem. O livro me ajudou a encontrar as minhas perguntas.

Que perguntas você costuma fazer aos pacientes?

Procuro o jeito da pessoa lidar com a doença, procuro mapear o contexto emocional dela. Sempre faço três perguntas importantíssimas:

  1. Do que você tem medo?
  2. Por que você acha que vale a pena estar vivo?
  3. O que você está disposto a fazer para permanecer vivo?

Se você diz que tem medo da dor, eu falo que pode ficar tranquilo porque tem medicamentos que ajudam nisso. Se você me conta que vale a pena ficar vivo por causa dos seus filhos, eu pergunto o que você faria para continuar perto deles. Supondo que você responda “eu faria tudo”, vou perguntar: “Você faria uma cirurgia? Iria para a UTI por causa de seus filhos? Faria diálise?” Eu preciso oferecer caminhos de tratamento considerando os motivos do paciente e não os meus como médica! Tive um paciente com câncer de próstata avançado que não queria fazer diálise de jeito nenhum. Respeitei. Até que um tempo depois a filha dele engravidou e ele mudou de ideia. Aí o difícil foi convencer os nefrologistas da indicação de diálise para um paciente com câncer avançado. O pessoal me alfinetava: “Você fez especialização no teste da revista Claudia, é?!”. Eu falava: “Veja bem, a indicação da diálise aqui é um prolongamento da vida dele, um prolongamento com grau de sofrimento, mas é um sofrimento com sentido porque esse paciente vai conhecer o neto dele”.

Se o ensino da medicina é focado na doença e não na pessoa doente, os cuidados paliativos não devem ser muito valorizados nos hospitais… Difícil trabalhar nessa área, não?

No geral, o cuidado paliativo é considerado um fracasso ou um cuidado menor. Você olha a parte de home care dessas empresas que dizem cuidar de pacientes terminais… Cuidam o caramba! Elas mandam os piores profissionais porque acham que, já que o paciente vai morrer, não tem muito o que fazer. Então pegam o técnico que não tem nada a ver, o médico que acabou de entrar, a psicóloga desvairada e mandam todo esse povo louco cuidar do paciente que está morrendo. Mas esses pacientes não têm tempo para desperdiçar com pessoas que não sabem o que estão fazendo… É o contrário! Eles têm que receber a visita dos mais experientes. Tive a sorte de trabalhar com uma equipe de oncologia no [hospital Albert]Einstein bem mais amadurecida nessa questão de sucesso e do fracasso. Em outras áreas ainda é um tabu não conseguir salvar o paciente, mas na oncologia a morte está mais presente porque o câncer em muitos casos é uma sentença de morte. Foi essa convivência com esses médicos que trouxe para mim a grandeza do não saber.

Como assim?

Um dia eu estava acompanhando um profissional super renomado no atendimento a uma senhora que era paciente dele há muitos anos. Ele simplesmente assumiu para ela que não sabia mais o que fazer. Ele falou: “desmarquei minhas consultas hoje e vou me reunir com alguns amigos de fora para discutir o seu caso e espero voltar com uma proposta”. Eu fiquei tão impressionada com aquilo… Mais tarde, entrei no quarto dessa senhora imaginando que ela estaria mal e pensando no que eu poderia dizer… Mas ela estava ótima, conversando com as amigas e contando que estava feliz porque tinha o melhor médico do mundo. Ela dizia, orgulhosa: “ele desmarcou o consultório para estudar e cuidar de mim!!!”. Fiquei cinco anos com esse grupo de médicos. Depois dessa experiência fui convidada pelo Einstein para expandir o trabalho, implementando as políticas de cuidados paliativos no hospital, inclusive treinando as pessoas para prestar atendimento. Enfim os cuidados paliativos entraram num grande hospital pela porta da frente!

Quem é o paciente de cuidados paliativos?
Toda pessoa que tem uma doença grave e incurável. Mas há casos em que no começo da doença nem tem sintoma. Então quando fica clara a necessidade dos cuidados paliativos? Quando o paciente tem a progressão da doença e o tratamento que é oferecido não modifica o curso natural dela. Daí a pessoa faz o tratamento para ter melhor qualidade de vida no tempo que lhe resta. Eu tenho uma paciente que recebeu um diagnóstico de câncer num exame de rotina e não teve nenhum sintoma da doença, mas teve do tratamento. E daí ela me procurou para cuidar desses sintomas.

Você trata também dos sintomas emocionais?

Você tem que lidar com tudo que permeia a condição da pessoa doente, considerando inclusive o que ela sente em relação ao que está vivendo. Porque jeito de lidar com a realidade é um negócio absolutamente individual. É de cada um. Tem gente que quer conhecer a própria doença a fundo, tem gente que prefere não saber…

O que você faz nesses casos em que a pessoa se agarra a qualquer coisa para negar sua própria situação?

Tive casos assim, mas é muito difícil que venham para mim porque solicitar o meu atendimento pressupõe que existe a aceitação da possibilidade de morrer. O que já vivi foram experiências em que existiam diferentes opiniões na família. Recebi um senhor sobre quem os médicos tinham dito que não havia mais o que fazer, mas a família optou por não contar a ele porque ele não queria saber. O que essa experiência mostrou? Que trancar o exame numa gaveta e dizer que os leucócitos estão fraquinhos – ou seja, deixar tudo no diminutivo para tentar tirar a gravidade da situação – não adianta. A pessoa doente sabe, porque o corpo dela sabe! Se ela não consegue levantar da cama, tem alguma coisa errada acontecendo, não é “só uma coisinha”. Mas tem gente que morre assim, na negação. Não se trata de esperança, é uma ilusão mesmo. Esse senhor não soube da verdade por todas as letras mas lidou com ela. Se despediu, fez todos os processos que uma pessoa que soubesse faria. Ele lidou com a realidade e não com a notícia, entende? E o que mais importa é lidar com a realidade.

Muitos médicos defendem essa ideia de que é preciso dizer sempre a verdade ao paciente…

Sim, muita gente diz que o paciente tem o direito de saber e eu concordo – mas desde que ele queira saber! Tem gente que até pensa que sabe… O contato com esse senhor foi muito lindo. Eu cheguei ao hospital, me apresentei e expliquei o que eu poderia fazer por ele. Falei que voltaria mais tarde, mas que não me esperasse pois não tinha previsão de hora. Ele me esperou com um chá até as 23h. Eu perguntei “Como o senhor está vendo tudo isso que está acontecendo?” e fui fazendo um resumo do quadro dele, relembrando os cinco anos de convivência com a doença, todas as transfusões de sangue… Ele foi concordando com cada referência e ao final eu perguntei de novo “Como o senhor está vendo tudo isso que está acontecendo nos últimos tempos?”. Ele chamou a esposa e disse: “Amor, como eu estou vendo tudo isso?”. Nesse momento eu entendi que ele só iria ver o que ela permitisse que ele visse. E eu soube que tinha que trabalhar o olhar da esposa. Se eu conseguisse fazer com que ela aceitasse o processo da realidade encontraria caminhos para trabalhar com ele. Num caso como esse, os profissionais mais fundamentalistas defenderiam que tem que contar de qualquer jeito. Gente, são 60 anos de convivência! Quem sou eu para dizer que esse casal não está funcionando direito? Eu tenho que dançar a música que eles tocarem.

Como terminou essa história?

Com o tempo a mulher se acalmou e foi permitindo… Antes ela não deixava que os amigos visitassem o marido porque achava que ao ver a reação das outras pessoas ele iria entender que estava mal. Aí eu falei: “Ele está mal… Ele valoriza muito os amigos e ele não tem muito mais tempo consciente, não ia ser legal se ele tivesse essa coisa gostosa?”. Aí com o tempo ela foi cedendo e abrindo esse espaço. Eu tento mostrar às pessoas que a lágrima é boa!

 

(assista à palestra da Dra Ana Claudia no TED e leia a segunda parte da entrevista na próxima semana)