Esse projeto é um convite para quebrar o tabu. Um canal de inspiração e de informação para quem vive o luto e para quem deseja ajudar

Ver quem você ama indo embora todos os dias

A jornalista Renata Suter era casada com o também jornalista e colunista Fred Suter quando ele foi diagnosticado com o mal de Alzheimer. Em pouco tempo Fred mergulhou na complicada espiral da doença. Renata se viu sozinha para cuidar do marido. No depoimento a seguir ela reflete sobre as marcas e o aprendizado de um luto que começou bem antes da morte precoce de Fred, aos 64 anos.

Fred morreu há pouco mais de cinco anos, vítima de um tipo agressivo do mal de Alzheimer. De um momento para o outro, numa consulta médica, a vida me fez entender que ele seria arrancado de mim. A luta era perdida desde o início.

Sempre que me perguntam como consegui superar a morte de meu marido, respondo: não consegui. Perdi as contas de quantas vezes me revoltei desde que soube do diagnóstico. Briguei comigo mesma, com o próprio Fred, com Deus, com os olhares preconceituosos que começaram quando a doença se agravou. Com os “amigos”, tão dedicados às críticas, mas tão omissos em relação a ele. Fui julgada, condenada e metralhada. Sem que ao menos procurassem saber como foi viver tudo aquilo.

Não tive alguém para me ouvir, me ajudar, nem mesmo para me dizer: “Calma, vai dar tudo certo”.

Enfrentar o Alzheimer é ver a pessoa que você ama indo embora aos poucos, todos os dias. Isso é o pior de tudo. Eu via Fred perdendo a personalidade, se transformando numa outra pessoa que, além de eu não conhecer, não era aquela por quem eu me apaixonara.

Obrigada a aprender na marra a conviver com essa nova pessoa, tive de digerir os preconceitos, as reações dos amigos. Foram muitas as vezes em que vi o olhar quase de reprovação ao “novo” Fred. Perdi as contas de quantas vezes “amigos” ligavam apenas para bater ponto, cumprir a obrigação social. Ao perguntar sobre o estado de saúde dele, emendavam um comentário, evitando ter que ouvir uma resposta sincera de que nada ia bem.

Nenhum amigo, dele ou meu, foi capaz de perguntar: “Quer que eu fique com o Fred enquanto você vai ao supermercado, sai para pagar contas ou vai trabalhar?”

Recebi ajuda de duas pessoas que conheci depois da doença. A primeira, o porteiro do prédio do Leme, onde moramos por poucos meses. Ele ficava de olho no Fred quando eu precisava sair. A segunda foi nossa vizinha de porta, em outro bairro. Ela ficava com Fred quando eu saía e não podia levá-lo comigo. Porque levá-lo comigo exigia atenção redobrada. Eu vivia assombrada pelo pavor de Fred se perder, se machucar ou, em ambientes mais barulhentos, ficar incomodado e ainda mais confuso.

Quantas vezes, no meio da rua, olhei para ele e, ao me dar conta do seu olhar desprotegido, quase assustado, corria e o abraçava. Minha vontade nesses momentos era botá-lo no colo, como um bebê, até que o medo que ele sentia passasse. Como quando ele acordava apavorado de madrugada com um sonho ruim, completamente ensopado de suor, e pedia para eu segurar a mão dele. Dificilmente ele conseguia voltar a dormir e lá íamos nós madrugada adentro. Depois que ele se acalmava, eu o levava para um banho bem morno, o ajudava a colocar um outro pijama e tentava fazê-lo dormir. Àquela altura, meu sono já tinha ido embora e eu mal reagia de tão cansada.

De manhã, tinha que voltar à minha rotina: cuidar de Fred, levá-lo para caminhar, nadar, exercitar seu raciocínio, quando o meu mal funcionava.

Mesmo vivendo mais a vida dele do que a minha, ainda fui criticada.

Certa vez, um fotógrafo que durante anos colaborou com a coluna de Fred nos principais jornais do Rio quis me dar uma bronca: “Por que você não quer deixar o Fred ver a mãe dele?”. Respondi: “Porque para isso eu precisaria levá-lo a um lugar que ele odeia: o cemitério.” O tal fotógrafo ainda insistiu: “Você tem certeza de que ela morreu? Ele me pediu que eu a trouxesse até ele”.

Situações assim minavam minhas forças.

Fred foi bem mais do que meu marido. Foi o homem que mudou a minha vida. Éramos muito diferentes. Eu amo sol, praia, mar. Fred odiava. Brincava que se a praia fosse mesmo algo de bom, seria azulejada. Eu fazia questão de praticar exercícios, ele abominava a ideia, inclusive a de eu fazer. Ele adorava uísque. Eu, champagne. Ele era fã de Billie Holiday, Ella Fitzgerald, ópera. Eu, de Michael Bublé, Marisa Monte e Annie Lennox. Tínhamos em comum Ennio Morricone. Ele amava arte, adorava ir às exposições de seus artistas favoritos. Eu torcia o nariz. Sempre tive o paladar quase infantil. Ele, sofisticado, não dispensava endives e aipo. Poderia listar outras inúmeras diferenças. Elas jamais nos afastaram. Ao contrário, nos aproximaram.

Eu o conheci num tradicional bar do bairro carioca do Leblon, o Florentino. Cruzamos olhares duas vezes. A primeira, quando nos conhecemos. A segunda, no dia em que demos o primeiro beijo. Foi fulminante. Fred me olhou com uma luz nos olhos que eu jamais vira em alguém. Olhou como se eu fosse tudo o que ele procurasse há tempos. Eu soube, naquele instante, que ele era o homem da minha vida.

Lá no Florentino eu ouvi pela primeira vez a frase que ele repetiu para mim todos os dias dos 11 anos em que fomos casados – à exceção da fase crítica da doença: “Some people come into our lives, touch our hearts and we are never, ever the same”(“Algumas pessoas entram em nossas vidas, tocam nossos corações e nunca mais seremos os mesmos.”)

Começamos a namorar em abril de 2000. Em junho daquele mesmo ano, num horário em que Fred deveria estar no jornal O Dia, onde ele era o principal colunista, recebo um telefonema dele, perguntando se poderia ir até a minha casa. Respondi que sim, preocupada com o tom sério de sua voz. Em poucos minutos ele chegou. Abri a porta e, antes mesmo de entrar, ele me perguntou: “Casa comigo?” Eu, ainda sem ar, o puxei para dentro, o abracei e respondi: “Sim, sim e sim!”

Não posso dizer que o começo foi fácil. Os ciúmes excessivos e a necessidade de controlar cada passo que eu dava me sufocavam. Um mês depois de estarmos morando juntos, Fred passou mal e ficou internado por mais de uma semana por conta de problemas cardíacos. Felizmente, se recuperou e aquela semana nos aproximou definitivamente. Fiquei no hospital com ele, do primeiro ao último minuto. Jogamos cartas, falamos muita besteira e passamos horas conversando sobre o que faríamos dali em diante. Fomos felizes, muito felizes. Mais do que eu poderia imaginar.

Fred não era exatamente o “gente boa” do pedaço. Tinha temperamento forte e explosivo, teimoso além do razoável. Por outro lado, era engraçado, irreverente e talvez fosse o cara mais competente que conheci. Amava o que fazia. E sabia que era bom naquilo. Mas jamais foi pretensioso. Um homem sensível, generoso e pronto para viver um grande amor.

A vida só esqueceu de nos dar mais tempo. A vida só esqueceu de me ensinar a lidar com o mal de Alzheimer. Aprendi “no tapa”, com cada dificuldade, entendendo como eu me responsabilizaria dali em diante por absolutamente tudo.

Àquela altura, como a maior parte das pessoas e famílias que enfrentam esse mal, a nossa situação financeira estava arrasada. Ambos desempregados. Não sei de onde tirei força, mas ela surgiu. Passei a dar banho, ajudá-lo com as refeições, vesti-lo, criar atividades que o fizessem pensar e assim não perder a fala e o raciocínio precocemente, caminhar e nadar com ele para evitar a atrofia das pernas. Além de fazer todo o serviço da casa. E trabalhar a cada oportunidade que surgia.

Alguns dias eram fáceis. Outros, de puro desespero. No pior deles, fui literalmente ao chão. Era um daqueles dias de pura contrariedade. Fred recusava comida, banho, passeios. Por mais que eu tentasse, a resposta era sempre não. Saí de perto dele. Fui para o quarto e me sentei no chão, ao lado da cama. Nem sei quanto tempo fiquei ali. De um lado, Cookie, do outro Mel, nossas duas cockers. Ambas “velavam” o meu pranto e o meu desespero. O homem por quem eu era apaixonada desaparecia e dava lugar a um cara intratável. Sei que aquele jamais foi o Fred. Jamais seria.

A vida seguiu entre minhas tentativas insanas de encontrar uma cura para aquilo que eu sabia ser incurável. O meu maior fantasma era o momento em que ele esqueceria meu nome. Acho que, num rasgo de piedade, a vida não quis que eu passasse por isso. Fred jamais esqueceu meu nome.

Gostaria de poder falar que existem formas razoáveis de conviver com o mal de Alzheimer. O que há, para preservar a sanidade e o equilíbrio emocional de quem está ao lado de um paciente dessa doença, é encontrar maneiras de conduzir as dificuldades. O principal é respeitar a personalidade de quem sofre com o Alzheimer, encontrar o horário certo para cada atividade. Por exemplo, Fred detestava piscina e praia, mas passou a adorar dar algumas braçadas na piscina do condomínio onde morávamos. É viver um dia depois do outro, adaptando a rotina à nova realidade.

Minha vida seguiu. À força, mas seguiu. Não houve um dia sequer em que eu tenha deixado de pensar nele. Tive novos relacionamentos, casei novamente, mas levarei para sempre o amor que sinto por Fred.

Já me peguei algumas vezes correndo pro telefone pra contar alguma novidade pra ele. E aí me dou conta de que ele não vai mais estar do outro lado da linha. Desesperar? Não mais. Aprendi que perdemos tempo demais com o que não é bom. Desperdiçamos vida. Vivemos sem valorizar quem faz parte da nossa história. Dureza é fazer quem ainda não entendeu isso valorizar o tanto de vida que tem. Aproveite a sua, já.