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Como contar para uma criança que alguém morreu

Não esconder a verdade e responder de forma honesta e simples às suas perguntas é a melhor forma de prepará-las para compreender e assimilar a irreversibilidade da morte. Elas têm direito de saber e de viver, da sua forma, sua tristeza e frustração

A jornalista Clarice Chiquetto viveu a experiência devastadora de ver nascer e morrer, em apenas 4 meses, a sua primeira filha, Cecília, com o marido Felipe Datt (leia aqui o seu depoimento). Desde a partida do bebê, o casal mergulhou, cada qual ao seu modo, no intenso processo de luto.  Nessa vertigem de emoções que costumamos comparar a uma montanha-russa, Clarice aprendeu a ver o mundo com novos olhos e a observar, dentro e fora de si, o significado e as conseqüências da finitude. Um dos seus aprendizados foi de entender o que a morte significa para os olhos de uma criança. Mesmo que não seja ela a enlutada, saber que alguém conhecido morreu, e que todos, enfim, morreremos, tem um impacto profundo sobre si. A partir dessa constatação e do que viu acontecer à sua volta depois da morte da filha, a jornalista foi apurar com estudiosos qual seria a melhor forma para uma criança ter seu primeiro contato com o tema.

Segue aqui sua reportagem com ensinamentos esclarecedores a respeito da educação para a morte, com que todos nós deveríamos nos preocupar.

 

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Vendo a filha chorar por dias seguidos depois de contar a ela que a bebê de uma amiga havia falecido, a fisioterapeuta Daniela Vergílio ficou na dúvida se havia tomado a melhor decisão ao dizer a verdade à filha de seis anos.  Talvez tivesse sido melhor dizer que a neném havia melhorado, pensou. A curiosidade da criança surgiu após ver no celular da mãe uma foto da bebê na UTI e despejar um monte de perguntas, até a última: “e agora ela já tá melhor, mamãe?

Mesmo sem saber, Daniela agiu da forma mais aconselhada por especialistas: não esconder das crianças as respostas sobre morte e perdas. “É importante o adulto se perguntar: ‘o que quero ensinar para meu filho com a resposta que dou pra ele?’ Se eu tenho dificuldade de lidar com aquela situação, vou ensinar que ele não consegue lidar com aquilo. E as crianças conseguem sim lidar com a perda”, afirma a psicóloga Isabela Hispagnol, especialista em luto e mestre pelo Laboratório de Estudos sobre o Luto (LELu) da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).

A primeira coisa que devemos ter em mente é que, ao contrário do que às vezes pensamos, que as ‘crianças não percebem’, elas percebem sim as ausências e perdas. Desde muito pequenas, quando começam a se deparar com as ‘perdas normativas’ do ciclo vital, como o desmame, a troca de classe, o amiguinho que se mudou”, explica Isabela.

O psicólogo Alexandre Coimbra Amaral, terapeuta familiar que organiza grupos mensais voltados à perda neonatal e gestacional em São Paulo, reforça que não devemos impedir a criança de passar por esse momento. É claro, ele ressalta, que com uma criança de dois anos, por exemplo, é preciso falar de uma forma mais gentil, podendo usar brinquedos e outras formas de comunicação, mas nunca privar a criança de passar por isso: “essa dor e essa vivência também são dela; da forma dela, mas são dela. Ela precisa ter o direito de viver isso”.

O mais importante, em momentos de morte, é deixar claro à criança que acabou, que não tem mais volta. “Dentro da crença de cada um e observando caso a caso – se a criança já está sofrendo muito, por exemplo –, mas é preciso ficar claro que aquela pessoa não vai mais voltar. Pode dizer que foi para o céu, mas afirmar que a criança não irá mais vê-la”, diz Isabela, que também é co-fundadora, junto com a psicóloga Maria Helena Franco,  da One Life Alive, plataforma online que oferece material educativo em luto. Ela lembra o caso de uma família que atendeu, preocupada com uma criança que após a perda da mãe repetia sempre que queria morrer. Quando Isabela foi conversar com o garotinho, descobriu a razão: após a morte da mãe, haviam lhe dito que quando ele morresse iria encontrá-la.

Especialmente para crianças pequenas, que não entendem metáforas e têm dificuldade de entender o que é mortal, dar respostas concretas é fundamental para que possam entender. Optar por respostas que garantam a diminuição das contradições, das dúvidas e das ambiguidades é a recomendação dos especialistas.

Uma alternativa é devolver a pergunta à criança. Indagar o que ela está sentindo e pensando. Procurar fazer com que ela traga o conteúdo para ser trabalhado. Assim, é possível saber até aonde ela quer ir e não ultrapassar esse limite, criando-se um espaço de conversa para que ela possa administrar o sentimento que surgiu, mas sem trazer informações além do que ela consegue absorver naquele momento. “Não omitir é importante, mas responder de forma simples, sem ir além do que a criança perguntou, também é. Ser verdadeiro e objetivo, respondendo as perguntas na medida em que aparecem. Sem deixar lacunas ou perguntas sem respostas”, afirma Isabela.

Ter paciência para perguntas que vêm e vão também é fundamental. Crianças, em diferentes momentos, vão reinterpretar e revisitar as mesmas questões, de acordo com o que vão entendendo e descobrindo do mundo e da vida. Quando uma criança faz a mesma pergunta de novo, não é porque não entendeu, é porque está reinterpretando o fato, já que sua base de conhecimento mudou: “Não quer dizer que não entendeu, ela vai tentar entender de acordo com o que vai aprendendo. Precisa das respostas para reestabelecer o seu mundo interno, trabalhar com a ruptura, encontrar novos alicerces para conseguir se mover a partir daquele ponto”, diz a psicóloga.

No caso da fisioterapeuta Daniela, nas semanas após a notícia da morte, a filha pediu diversas vezes para ver fotos da bebê e de sua mãe. Repetia as mesmas perguntas e comentários: indagava como era possível um bebê ter morrido e se tinha como fazer com que a bebê voltasse.

Diante de questionamentos como esses, Isabela aconselha aos adultos não ensinarem as crianças que as pessoas só morrem quando estão mais velhas. “É importante dizer que esperamos que as pessoas morram velhinhas. Mas, é também importante explicar que, às vezes, por causa de acidentes ou de doenças muito graves, as pessoas podem morrer antes. Reforçando que para morrer é preciso uma doença muito grave, sem cura, e que a maioria delas curamos com remédios. Do contrário, podemos angustiar muito a criança, que pode começar a achar que qualquer coisa traz morte”, explica.

Educação para a morte

Isabela destaca a importância de educarmos as crianças para as perdas, e incluir a morte no ciclo da vida. Não só em casa, mas também nas escolas. “É importante ensinarmos as crianças a lidar com a morte e introduzir as perdas e temas relacionados em escolas de primeira infância”, diz. Esse ensinamento pode ser feito por diversas formas, sem sermos agressivos ou tristes: o ciclo de vida das plantas, a convivência com animais de estimação, os desenhos infantis e os livros, são alguns exemplos.

Na nossa cultura (ocidental), a morte ainda é um tabu, quase não falamos sobre isso e torcemos para a criança não perguntar e nós não termos que falar. A dificuldade maior, na verdade, é do adulto. É parte da nossa cultura a dificuldade em falar sobre coisas tristes”, comenta.

Isabela, que trabalha em projetos de diversas escolas, sempre ressalta aos coordenadores que não há como esconder o assunto das crianças e é preciso falar da morte. Lembra o caso de uma escola que quis esconder dos alunos que o peixe da escola havia morrido procurando outro parecido. “Desaconselhei. As crianças perceberiam que não era o mesmo. E, se mentimos e as crianças descobrem, surge desconfiança. Outra escola disse aos alunos que um funcionário havia ido embora, quando na verdade ele havia morrido. Se uma das crianças descobrisse, a notícia iria se espalhar e elas deixariam de confiar naqueles adultos”, exemplifica, destacando que esses casos quebram o que a criança tem de mais importante para conseguir lidar com perdas e sentimentos difíceis, que é a confiança para se abrir e se confortar com os adultos.

O adulto acha que tem que ter todas as respostas do mundo, mas não tem que ter. Às vezes, as crianças aceitam um ‘não sei’. Às vezes, elas precisam de uma resposta muito mais simples do que esperamos”, afirma Isabela. Procurar minimizar a dor da criança negando que aquele sentimento existe, dizendo coisas como “não pense nisso”, “não foi com você”, também não é aconselhável. Quando os adultos não validam o que a criança está sentindo, criam uma distorção entre o que ela está sentindo e o que acha que deveria sentir. “Com isso, ela vai reprimindo esse sentimento e ficando mal”, diz.

Conversar sobre perdas é importante para aproveitar os momentos que surgem na vida da criança para que ela aprenda a lidar com sentimentos e frustrações. Cabe ao adulto dar elementos para a criança aprender a lidar com suas emoções e fazer a interpretação dela. Se ignoramos o que a criança está sentindo, perdemos a oportunidade de ensiná-la a lidar com sofrimento e perda. Se um animal de estimação morreu, por exemplo, ou um amiguinho está triste porque o pai faleceu, é natural que a criança fique triste e com raiva, afirma Isabela, “e é importante que possa expressar esses sentimentos e conversar com aqueles em quem mais confia, os adultos próximos. Se pais e educadores não falarem, a criança perde seu único suporte, e pode pensar: ‘isso é tão ruim que não posso nem falar sobre isso’”.

Mundos e perdas diferentes, questões diferentes

As dúvidas e questionamentos vão diferenciar as crianças que sofreram a perda das que não sofreram, as mais novas das mais velhas, as que vivem em ambientes onde acabam se acostumando com a morte, como zonas de guerra, das que vivem em ambientes seguros. “O entendimento da perda vai variar muito do contexto de vida de cada um. Porém, independente da situação, todas terão dúvidas, medos e perguntas, e vão precisar de respostas”, afirma a psicóloga.

É importante também observar as crianças mais quietas e que não expõem muito sentimentos. Adultos que convivem com essas crianças tendem a se sentir aliviados porque imaginam que se a criança não está falando, não está sentindo. Segundo Isabela, na maioria das vezes não é o caso. “Elas estão sentindo sim, estão enlutadas, angustiadas, tristes, só têm mais dificuldade em colocar para fora. É preciso ficar atento e procurar outras formas de se exprimirem, como desenhos e brincadeiras. Quando a criança verbaliza é mais fácil perceber o que está sentindo. Quando não verbaliza, é preciso investigar e ajudá-la a se expressar. Se estiver muito difícil, é aconselhável procurar ajuda profissional. O que não pode é pensar ‘ufa, ela não está falando, não vou precisar falar sobre isso’”.

Por fim, os especialistas aconselham que os adultos não escondam das crianças se estiverem eles próprios tristes ou chorosos. Mas deixem claro que aquela tristeza é por algo que aconteceu na vida dos adultos e que não tem relação com as crianças. Do contrário, sem elementos para interpretar, a criança pode fantasiar e achar que é com ela, que ela fez algo, e ficar angustiada tentando descobrir o que pode fazer para o adulto não ficar mais triste. Mesmo que a criança não tinha contato com quem morreu, se afetou a família ela vai notar e vai tentar interpretar. “Falar ajuda a criança a ficar mais aliviada e a administrar aquele sentimento, além de endereçar a dor para o que realmente é, e não deixá-la criar outras coisas na cabeça para administrar, como ‘fui eu’ ou ‘aconteceu porque eu desejei’, finaliza Isabela.


Dicas para abordar a morte com crianças:

– convivência com animais de estimação

– cultivo de plantinhas

– desenhos animados, como Operação Big Hero e O Rei Leão

– livros que de alguma forma tratem do assunto, como O coração e a garrafa

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