Esse projeto é um convite para quebrar o tabu. Um canal de inspiração e de informação para quem vive o luto e para quem deseja ajudar

O “Día de Los Muertos”, essa imensa celebração da vida

Finados costuma ser o feriado mais triste do calendário brasileiro. Mas hoje a Beth Bylaardt nos conta como a data é celebrada com muita alegria no México: "celebrar a morte é a melhor forma de nos lembrarmos que estamos vivos, mas que tampouco é para sempre"

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Quando a Mari (cofundadora do projeto) me escreveu perguntando se eu topava escrever um artigo sobre ‘El Dia dos Los Muertos’, eu não só topei na hora como não fazia a menor ideia do que isso representaria para mim. Lembro do dia em que minha amiga Sandrinha me explicava que, apesar de não ter conhecido a irmã mais velha, que na verdade nem chegou a nascer, ela considerava isso uma perda e, sim, uma espécie de luto. Eu achei aquilo meio esquisito na época; não quis entender muito bem e toquei a vida sem me importar muito com isso (minha garganta começa a fechar nesse momento). Eu sabia de muitas histórias de amigos que tinham perdido pessoas muito próximas e reconhecia seus lutos. Mas na história da Sandrinha, não. Talvez porque fosse a minha. E quando é nosso, é exatamente quando a gente não quer olhar e sai andando meio de banda. O tempo foi passando e, há alguns meses, fui obrigada pela minha professora de canto a lidar com o meu luto. No campo de constelação familiar, meus dois filhos, que não chegaram a nascer, estavam pedindo para serem vistos. Eles queriam ser incluídos, fazer parte da família. Que eu reconhecesse a filiação, reconhecendo assim a minha própria maternidade. Não vamos entrar aqui na questão de acreditar ou não em espíritos, encarnações e etc. Mas, ainda que simbolicamente, para a minha própria aceitação e aceitação de minhas escolhas, eu precisava honrá-los. Eles existiram e eu senti uma dor terrível em pensar que muitas vezes eu simplesmente me esquecia disso. Que mãe esquece seus filhos por um dia sequer? Não tem. Se esquece, é porque eles estão escondidos nas gavetas escuras dos “segredos de família”. E isso dói muito. Ninguém quer viver na escuridão do esquecimento, nem os vivos, nem os mortos.

Demorou um paragrafão, mas enfim chegamos no assunto do post. O Dia dos Mortos é sobre isso: sobre não esquecer dos que já se foram. A nossa história não se escreve sem eles, nem para trás, nem para frente. Se não olharmos para os nossos mortos, não podemos seguir vivendo.

Eu achei que esse seria um texto praticamente jornalístico. Vi documentários, esquematizei o que seria um altar de oferendas, estudei para quê serviam cada uma delas. Voltei lá nos aztecas, na origem da festa, no sincretismo religioso, nas datas que se moveram através dos tempos para se encaixarem no calendário espanhol católico, como eram os costumes no México, na Guatemala, na Costa Rica, na Nicarágua. E o tempo todo eu só pensava uma coisa: preciso fazer um altar para os meus mortos.

De tudo o que difere essa festa nas diferentes regiões das Américas Central e do Sul, nada ficou. Mesmo anotando e relendo e fazendo esquemas gráficos. O que há em comum entre elas é o que realmente importa. A data de 2 de Novembro é na verdade o último dia de uma temporada em que as pessoas ficam esperando as almas retornarem. E qual a melhor forma de receber familiares e amigos queridos? Festa! Uma senhora festa, com tudo o que essa senhora pede: música, comida, bebida, trajes especiais, cores e… alegria. Sim, muita alegria. El Día de Los Muertos é uma grande celebração de vida.

O altar de cada casa é preparado, entre elementos religiosos e simbólicos, com tudo o que os mortos da família mais gostavam, especialmente suas comidas e bebidas preferidas. Se o defunto fumava, cigarros ao altar. Caveiras coloridas e enfeitadas, muitas de açúcar ou chocolate, recebem pequenos papéis com os nomes dos que já se foram. Fotografias, velas, flores e muito copal adornam as mesas. A flor tradicional é o cempasuchil, um tipo de cravo de um amarelo forte, que representa o sol e a iluminação. Muitas vezes são dispostas de maneira a criar um “caminho” até o altar, para que as almas não fiquem perdidas, assim como o incenso e o copal, que através de seu cheiro e de sua fumaça, sinalizam para eles onde está rolando a festa. É costume colocar também brinquedos e jogos, para a diversão dos visitantes etéricos, assim como alguns objetos pessoais estimados em vida. Comida não pode faltar. Uma abundância de frutas, doces típicos e pratos elaboradíssimos, como o mole e os tamales, compõem a mesa. Os pratos preferidos de cada morto são feitos com muito amor e com os melhores ingredientes. Ao se fazer uma oferenda, há que ser tudo do bom e do melhor. O Pan de Muertos também é uma tradição: um tipo de pão doce redondo que representa a generosidade da terra e dos anfitriões, muitas vezes decorado com ossos e crânios feitos da própria massa. Também a água pura é essencial, para matar a sede dos ilustres convidados que vem de tão longe; e um pratinho com sal, para que as almas se purifiquem e não se corrompam na jornada.

foto: latinamamarama.com
foto: latinamamarama.com

Além de tudo isso, cruzes, de preferência pintadas e trabalhadas em cores alegres, imagens da Virgem de Guadalupe, outros santos e, claro, fotos dos entes queridos, são indispensáveis. Enquanto escrevo, vou organizando mentalmente as oferendas que farei no meu altar. Coca-cola para a Tia Fátima, que era a coisa que ela mais gostava; cerveja alemã da melhor que eu puder encontrar para o meu avô, que dizia sempre cheio de orgulho – e pouca verdade – que nunca tinha bebido água na vida, só cerveja; uma boneca de pano para minha filha e um violão de brinquedo para o meu filho. Dois beija-flores, para que eles possam ir e vir na pureza e na leveza de suas almas infantis. E todo o resto que a tradição sugere. Jájá vou dar um google para descobrir a receita do Pan de Muertos.

E se alguém me perguntar se uma tradição tão mexicana faz sentido para mim, que sou brasileira, eu direi que celebrar a morte é a melhor forma de nos lembrarmos que estamos vivos, mas que tampouco é para sempre. E que, por isso mesmo, devemos respeitar e amar a vida. Vida que nos foi permitida e dada por eles, que não estão aqui, mas que vivem em nós, em nossas células, em nossa cultura, em nosso solo onde estão enterrados ou onde repousam suas cinzas. Se você fechar os olhos e pensar em todos os seus antepassados, que já se foram e que formam, vida após vida, essa imensa corrente da qual você ou seus filhos são a ponta, poderá escutá-los dizer silenciosamente e sorrindo de felicidade: “Nós que aqui estamos, por vós esperamos.”

Obs: Nesse exato momento, pipoca uma mensagem no meu celular de uma amiga que estava no México e chegou hoje: “– Oi, o Dani mandou um Pan de Muertos pra você!” E as sincronicidades do além. Amém.

 

Beth Bylaardt é mineira, escritora, publicitária, pesquisadora de tecnologias sagradas e no poder de cura dos alimentos, iniciada em tradições de manejo energético, curiosa, viajante e apaixonada pela vida.