Esse projeto é um convite para quebrar o tabu. Um canal de inspiração e de informação para quem vive o luto e para quem deseja ajudar

A coragem de pedir ajuda

Depois de perder o pai e a mãe em um acidente de carro, há três meses, Vanessa, de 21 anos, nos contou a sua história. Seu depoimento é um pedido de empatia: "Sua dor não é maior que a minha. Minha dor não é maior que a sua"

Foi em uma madrugada de muita angústia e solidão que a estudante mineira Vanessa Trindade encontrou nosso site na internet e decidiu escrever e nos enviar sua história. Ela perdera, há três meses, de forma trágica e inesperada, os dois pais em um acidente de carro. Seu comovente desabafo é o de uma jovem que, apesar da força que demonstra, está devastada internamente e procura o conforto possível na terapia, nos amigos mais próximos e na avó, mãe do pai, Maria Madalena. Nesses poucos meses, como ela me contou por telefone, ela vivenciou, além da dor da perda, o desamparo causado pelo tabu social que é falar sobre a morte. “As pessoas não querem falar ou falam coisas como “poderia ter sido pior”, “você tem toda a vida pela frente”eles poderiam não ter deixado recursos para você se sustentar”. Da forma mais dura possível, Vanessa entendeu, neste momento de luto agudo, que a dor silenciada é mais triste, que comparar ou hierarquizar o sofrimento não ajuda e que ninguém precisa dizer ou fazer nada especial para o enlutado: apenas estar por perto e oferecer empatia. “Sua dor não é maior que a minha”, escreveu, depois da nossa conversa. “Minha dor não é maior que a sua. Não preciso que chore comigo, apenas me deixe chorar. Caso desabe diante de seus olhos, sinta-se especial, confio em você. Não se desespere, só quero olhares e abraços sinceros

Segue aqui o seu depoimento:

Meu nome é Vanessa e tenho 21 anos. Há quase três meses, meu corpo, minha alma e minha vida se transformaram, resultado de uma tragédia que me matou por dentro. No dia 10 de Novembro de 2017 meus pais, Gaspar e Elaine, de 51 e 49 anos, sofreram um acidente de carro. Eu estava em Uberlândia, era uma sexta-feira e a ansiedade me consumia, uma vez que o ENEM seria no domingo seguinte. Meu único irmão, Vitor,de 23 anos, abriu a porta do meu quarto em desespero dizendo que nossos pais haviam sofrido um acidente grave. Ele corria de um lado para o outro, atônito, e logo percebi que eu precisaria me manter calma. Comecei a ligar para os meus parentes e perguntar por notícias, pedi pra que alguém nos buscasse. Todos diziam a mesma coisa: “seu pai está na UTI“. Me perguntava o porquê de não receber notícias da minha mãe e já imaginava o pior.

Quando entrei no carro do meu primo, notei que a foto do grupo da família do meu pai havia mudado para LUTO. Meu coração parou, comecei a tremer e logo e imaginei que minha mãe havia morrido. Engoli calada, Vitor estava descontrolado, não poderia dizer nada. Chorei e menti pra mim mesma a viagem todo, repetia comigo a todo momento que era uma mentira, não passava de uma mentira. Quando cheguei em Araxá vi uma multidão parada em frente a casa do meu avô, caí no chão gritando: era verdade mesmo, alguém morreu. Minha tia correu em minha direção e se abaixou, pedi pra que me contasse, perguntei se minha mãe havia morrido. Ela olhou dentro dos meus olhos e com um olhar recheado de dor, balançou a cabeça afirmando que sim…. Nesse momento, gritei, parte de mim se foi também. Pedi desesperadamente para ver meu pai: precisava vê-lo, tocá-lo, senti-lo. Minha tia me segurou e disse que meu pai também não resistiu. Caí no chão em choque, não consegui ouvir nada ao meu redor. Como assim meus pais morreram? O que vai ser de mim? Tenho só 20 anos e preciso mais deles do que tudo. Parecia mentira, não consegui sequer fechar meus olhos à noite, achei que acreditaria só quando os visse no caixão. No dia seguinte, o pesadelo continuou, ver seus pais mortos é o mesmo que pisar em brasa descalço. É se sentir vazia, mas ao mesmo tempo, sentir seu coração apertado. É se questionar o tempo todo se tudo aquilo é verdade. É olhar pra trás e enxergar seus antigos problemas como um único grão de areia em um deserto. É querer morrer junto. É duvidar da existência de Deus e se perguntar o tempo todo o que foi que fiz pra merecer isso.

Vanessa com os pais Gaspar e Elaine: a dor corta como navalha
Vanessa com os pais Gaspar e Elaine: a dor corta como navalha

Cada segundo desde que recebi a notícia me pareceu uma eternidade. No domingo, engoli a seco minha dor e fui pra Uberlândia honrar todos os esforços dos meus pais. Com muita dificuldade e dor do que sobrou de mim, fiz o ENEM. Fiz porque sabia que esse seria o desejo dos meus pais. Desde então fui forte inúmeras vezes. Dez dias depois fiz uma cirurgia, operei minha hérnia umbilical que me incomodava muito, passei quinze dias sem ao menos poder chorar. Menos de um mês depois dessa tragédia, fui aprovada em primeiro lugar em Psicologia em uma faculdade particular, garantindo uma bolsa.

Sobrevivi ao meu aniversário, ao aniversário da minha mãe, Natal e revéillon. Até que, finalmente, 2017 acabou. Aprendi muito em um mês. Aprendi que nos primeiros dias, chovem “amigos”. Aprendi que, infelizmente, o mundo não pára pra você. Aprendi que saudade corta como navalha. Aprendi que a vida é traiçoeira. Amadureci dez anos em um único dia. Acordei menina, dormi mulher. Hoje, é difícil encontrar pessoas para conversar sobre minha dor, pra mim, ninguém me entende… nem mesmo o meu irmão, uma vez que nossa relação não é muito aberta. Há dias em que estou cansada da minha realidade e daria tudo pra fugir de mim mesma. Por permanecer calada e sobrevivendo, todos me vêem forte e acreditam que já passou. Infelizmente, não passou, apenas começou… Agora que estou começando a entender e pensar com calma em tudo o que aconteceu, minha ficha está começando a cair, meus dias são longos e minhas noites infinitas. Me sinto só na multidão, o vazio só me consome a cada dia. É difícil acordar, andar, comunicar… Deixei de viver, passei a sobreviver.

Para refletir sobre casos dramáticos como o de Vanessa conversamos com nossa consultora, a psicóloga e doutora Gabriela Casellato, especialista que coordena o Instituto 4Estações e trabalha há mais de 20 anos com famílias e adultos enlutados.

Buscar uma rede de proteção é fundamental

Ao perder os pais em um acidente de automóvel, há três meses, Vanessa se diz “morta por dentro”. O que poderia ajudá-la diante de uma perda tão traumática?

Buscar uma rede de proteção. Perdas múltiplas são muito difíceis. A perda dos pais significa a perda da base de segurança, o que amplifica a solidão e a sensação de desamparo. Há uma sobrecarga do luto, desafios maiores com os quais se deparar. Nesse momento agudo de um surto traumático, toda a sua zona de conforto desaparece. A pessoa fica sem saber para onde ir, a quem recorrer. Por isso é muito importante buscar alguma rede de proteção : amigos, parentes, terapia

Três dias depois da tragédia, Vanessa reuniu forças para fazer, como ela conta, o que “seus pais gostariam que fizesse”: as provas do ENEM e, em seguida, o vestibular. Apesar do momento tão doloroso, ela conseguiu se sair bem nas provas e ser aprovada em primeiro lugar na faculdade. Agir dessa forma foi bom para ela?

Retomar a agenda foi positivo. Foi a forma como ela se re-conectou com os pais e buscou dar sentido à vida. De certa forma, quando se age assim, busca-se um propósito para seguir vivendo e uma forma de não dar tempo e espaço à dor. Por algum tempo, pode ser um analgésico e aliviar o sofrimento.

Quando esse analgésico pode agravar ao invés de minimizar a dor?

As pessoas reagem de forma diferente ao luto. Algumas levam um tempo proposital para deixar cair a ficha e lidar com o luto. É como se permitissem prosseguir com a vida como ela era antes da perda. Os homens costumam agir assim. E isso não significa que estejam sofrendo menos. Mas isso é muito diferente da negação da dor. Como a Vanessa conta em sua história, ela tem plena consciência do seu sofrimento. Tanto que precisa muito que outras pessoas saibam como está se sentindo.

Ela se sente pouco compreendida pelas pessoas em volta, que a julgam forte por suas atitudes.

A atitude que ela tomou a configura como uma pessoa forte diante de uma adversidade tão grande e isso tem um lado bom e um ruim. O bom é conseguir enfrentar a dor sem sucumbir. O outro é criar em torno de si uma imagem de força que acarreta uma sobrecarga. As pessoas costumam achar que quem é forte está bem e é capaz de enfrentar o luto sem ajuda. Isso os deixa mais sós, desamparados.

É mais difícil alguém receber ajuda quando passa a imagem de força?

Na verdade, essa imagem deixa a rede de amigos ou parentes em uma posição mais confortável, em detrimento dela mesma. É muito difícil para as pessoas verem uma pessoa forte se fragilizar. É assustador a gente reconhecer que alguém forte está se sentindo fraco.

Como então obter a ajuda necessária?

O grande desafio das pessoas que são fortes é saber pedir ajuda. Como muitas vezes não conseguem, é importante quem estiver do lado, a rede de amigos e familiares, se manifestar em sua direção e se oferecer. Mesmo sem perguntar, fazer coisas de ordem prática: supermercado, burocracias que envolvem o falecimento: podem, por exemplo, ajudar a guardar, dividir ou doar as coisas de quem morreu. Nos Estados Unidos, existem grupos voluntários que prestam auxílio a enlutados que deixam pratos de comida na frente de suas casas, tocam a campainha e vão embora. É uma forma de garantir um suporte sem obrigar o outro a recebê-los. As mortes trágicas costumam atrair muitas pessoas em torno dos enlutados que, muitas vezes, são obrigados a receber gente que mal conhecem e a “fazer sala”, quando queriam estar sós ou amparados pelos mais íntimos. A sobrecarga social vira um motivo de stress.

Por que as pessoas tem dificuldade para ajudar?

O problema é que, de uma forma geral, as pessoas tem pouco manejo diante de situações traumáticas. Diante do luto agudo, nem sempre sabem o que fazer. Acreditam que nada vai tirar a dor de quem está sofrendo uma perda tão devastadora. Deveriam entender que sua ajuda não vai mesmo tirar a dor, mas pode mitigar os seus impactos. Entrar em cena não como cura, mas como um fator de proteção. É o que é possível, e não é pouco.