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No enfrentamento de um câncer, luto pela própria morte não é uma escolha

Reflexões a partir da leitura do livro ‘Undying’ de Anne Boyer.
Imagem: iStock

Texto originalmente publicado na coluna Vamos Falar Sobre o Luto no UOL

 

Em seu premiado livro de memórias sobre o enfrentamento de um câncer, Anne Boyer defende o direito de ser vulnerável —e faz reflexões valiosas sobre como a sociedade encara a doença e o luto

Em 2014, quando descobriu que sofria de um câncer de mama dos mais agressivos, Anne Boyer, 41 anos na época, enviou uma lista de instruções aos amigos sobre como ajuda-la a enfrentar a doença. “Por favor, não tentem me impedir de pensar sobre a morte”, pediu. “Se, para além da dor, o pensamento é a única coisa que meu corpo pode me oferecer agora, quero e preciso me abrir às reflexões, mesmo as mais loucas ou mórbidas.”

Contrariando as estatísticas em torno de seu tipo de câncer, Anne venceu a doença, depois de enfrentar um longo e penoso tratamento por quimioterapia e uma dupla mastectomia. Saiu dessa experiência sem nenhum sentimento de heroísmo, com sequelas físicas, cognitivas e emocionais e um corpo que, segundo ela, “renasceu feito apenas de amor e de raiva”.

Do que viveu, do que pensou e do que pesquisou —principalmente sobre o percurso de outras mulheres que enfrentaram um câncer de mama—, Anne escreveu “The Undying”, livro que já na capa trata de deixar claro o que virá pela frente: “dor, vulnerabilidade, mortalidade, medicina, arte, tempo, sonhos, estatísticas, cansaço, câncer e cuidados”.

Premiado em 2020 com o Pulitzer, maior prêmio literário dos Estados Unidos, o relato da escritora mostra que, no enfrentamento de um câncer, fazer o luto da própria morte não é exatamente uma escolha. Mesmo em caso de cura, algo morre em quem passa pelo tratamento com drogas potentes que, literalmente, matam células cancerígenas mas também o sistema imunológico e outros recursos valiosos do corpo. Soma-se a isso a ameaça de finitude, o abandono pela incapacidade de amigos e colegas de conviver com a doença, os posts nas redes sociais aconselhando positividade e alegria como recursos de prevenção e de combate ao câncer… Ninguém percorre esse percurso sem ser transformado por ele.

Morte de Cleópatra, de Jean Andre Rixens, 1874 | Imagem: Wikimedia Commons

Anne Boyer denuncia o quanto nossa sociedade está doente já faz tempo. O caderno com instruções sobre o processo de tratamento que o hospital lhe entrega a deixa intrigada: por que só há fotos de gente sorrindo? Ela se recusa, já no ponto de partida, a compactuar com esse teatro que tenta transformar pacientes em cheerleaders de sua própria recuperação e que acaba por funcionar como uma injeção de culpabilidade, dando a entender que o doente é responsável por sua condição, tendo adoecido por não saber gerenciar bem as próprias emoções.

Perverso mecanismo que parece renegar o óbvio: a constatação de que a causa do câncer está no mundo. Em pesticidas, alimentos e outros produtos com ingredientes maléficos, na poluição da água pelo plástico, no ar de má qualidade etc.

“O mito da atitude positiva resume-se principalmente à imposição de uma norma machista, ou seja, a ideia de que as mulheres devem sempre ser alegres e sorrir mais”, diz Anne.

“The Undiyng” é um livro político e feminista, escrito a partir da experiência de um câncer que, embora possa se instalar também no tecido mamário dos homens, privilegia o outro gênero.

Analisando obras de arte sobre enfermidade e morte de mulheres, Anne revela o quanto o corpo feminino é, há séculos, prisioneiro da beleza mesmo nas situações mais dramáticas. Quase todas as representações do suicídio de Cleópatra, por exemplo, mostram a rainha nua ou seminua, os seios à mostra, numa pose derradeira que parece ser um convite ao sexo. Corpo publico, para ser visto e tocado, erótico e vigoroso ainda que sem vida.

Jovem Mulher em seu Leito de Morte, 1621 | Imagem: Wikimedia Commons.

Representação mais fiel da experiência de adoecimento e morte, o quadro “Jovem Mulher em seu Leito de Morte”, de 1621, mostra o retrato sem enfeites de uma mulher doente. Nele, tristeza, palidez, imobilidade dão o tom. Curiosamente, a obra é de autoria de uma pintora belga cujo nome foi mantido no anonimato (opção ou proibição?).

Lançado recentemente em Portugal com o título de “Aquelas que não Morrem” (editora Tinta-da-China), o livro de Anne Boyer é imperdível para quem, como ela, gosta de pensar e ir além dos clichês. Mesmo que o pensamento esteja a serviço do luto pela perda de si mesmo.