Esse projeto é um convite para quebrar o tabu. Um canal de inspiração e de informação para quem vive o luto e para quem deseja ajudar

É proibido morrer

“Para morrer basta estar vivo”, nos ensina o ditado, que saímos por aí repetindo com a boca vazia, sem realmente dar lastro às palavras que colocamos no mundo. A verdade é que negamos essa frase cada vez que culpamos alguém pela própria morte. Vimos manifestações assim no assassinato da vereadora Marielle Franco, na morte do jornalista Marcelo Rezende... Culpar a vítima é algo que fazemos às vezes sem perceber (e, em alguns casos, de maneira declaradamente agressiva). Afinal, por que que a gente é assim?

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Como entender os comentários maldosos e as duras críticas feitos a mortos “públicos”, como pessoas famosas ou vítimas de grandes catástrofes? Por trás de muitas dessas manifestações existe a reação tão comum de culpar pela morte, ainda que inconscientemente, quem é na verdade vítima dela. Culpamos a vítima porque não suportamos pensar que poderia ter acontecido conosco. Culpamos quem é assassinado, quem morre num acidente de trânsito, quem tem uma doença incurável (“será que essa pessoa se cuidou direito?”, pensamos). Precisamos encontrar responsáveis por cada partida, criar um roteiro que combine causa e efeito, que traga uma explicação, simplesmente porque é intolerável encarar a falta de sentido da morte. Para compreender esse sentimento coletivo em relação ao morrer (e tentar decifrar as reações mais descabidas!), batemos um papo com o psicanalista Claudio Cesar Montoto, doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP:

Diante de mortes que viram notícia nos jornais, na TV e na internet (a morte de figuras públicas ou de pessoas vítimas de acidentes e catástrofes, por exemplo) é comum encontrar comentários muito agressivos em relação aos falecidos. Por que isso acontece?

É preciso entender bem de que tipo de comentário estamos falando. Proponho deixarmos de lado, pelo menos para iniciarmos essa conversa, os comentários mais degradantes para nos concentrarmos no humor, que é um mecanismo de saúde mental. O humor permite a expressão de coisas que, se não fosse por ele, seriam praticamente insuportáveis. Nesse sentido ele é um bom mecanismo, um bom sinal, porque cria meios de lidar com a angústia. Mas é claro que deboche, humilhação e desrespeito são outra coisa. Não é a isso que me refiro quando falo em humor! Essas ofensas que demonstram total desconsideração a certos valores da civilização – tais como compaixão, alteridade, misericórdia – são um recurso encontrado por algumas pessoas para se defender da angústia de morte. Um recurso que é da ordem da perversão, de um narcisismo doentio.

Mas o que está por detrás dessas manifestações? Que recado se pretende dar?

Os comentários agressivos são uma forma extrema de tentar apagar o traço de angústia que a morte do outro desperta que é a possibilidade da nossa própria morte. Quem debocha e degrada está dizendo “é melhor que seja com você e não comigo”. Toda morte nos serve de espelho, porque nos lembra que morrer pode acontecer – e vai acontecer – a todos nós. Quase todo mundo viaja de avião… Então um avião que cai nos leva a pensar que podemos morrer num acidente aéreo, por exemplo.

Por que é importante aprender a conviver com a morte?

Quem não dá conta da angústia da morte perde a oportunidade de ouvir o que ela tem a dizer de enriquecedor. A vida talvez tenha sentido porque existe a morte. Por isso é uma pena que o ideal contemporâneo seja o apagamento da morte.

Como assim?

O ideal contemporâneo é que a pessoa morra na UTI – em outras palavras, morra privadamente, distante de nós – e que se tenha o menor contato possível com o corpo morto. Se faleceu agora, daqui a dois minutos o corpo já vai ser cremado. Desaprendemos a lidar com a morte. Há uma regressão, em termos de civilização, em várias frentes… O sujeito contemporâneo vai vivendo sem saber o que está fazendo, sem parar para refletir, sem parar para pensar qual é o lugar que ele ocupa perante o que lhe acontece. Existe um sentido de urgência para tudo, um acúmulo de vivências, vai-se vivendo uma coisa atrás da outra, ao ponto de no fim do dia a pessoa não conseguir lembrar de tudo o que fez porque foram muitas coisas. Vivendo desse jeito, no automático, no excesso, o aparelho psíquico não tem condições de processar as vivências para transformá-las em experiências. Isso nos leva a viver sem memória e sem futuro.

No caso das situações de morte, de que maneira esse “estado de urgência” aparece?

A urgência se traduz, por exemplo, no comportamento de tirar todas as roupas do falecido, todas as coisas dele e já doar tudo, esconder as fotografias, fazer desaparecer qualquer marca da ausência assim que a morte acontece. O objetivo é apagar tudo o que mostre que há uma falta. Mas é possível esconder a falta? Não, claro que não! E a tentativa de apagar a falta, de apagar a morte, cobra um preço alto, na forma de angústia. Seria muito menos sofrido falar da morte, pensar na morte, deixar a morte fazer parte da vida.