Esse projeto é um convite para quebrar o tabu. Um canal de inspiração e de informação para quem vive o luto e para quem deseja ajudar

Viver tudo de olhos bem abertos

Tem gente que mesmo quando parte, fica. É assim que Rubia Sammarco se sente em relação a Giovana e Morgana, duas grandes amigas falecidas num intervalo de dois anos. A experiência do luto trouxe para ela um grande aprendizado: as tristezas, como as alegrias, merecem ser encaradas de frente.
Silhueta de Giovana numa aquarela feita por Rubia
Silhueta de Giovana numa aquarela feita por Rubia

 

Hoje em dia, vejo algumas coisas de maneira diferente. O luto é uma delas. De verdade, eu jamais havia olhado para este processo. Não olhei nem mesmo quando perdi minha avó aos 19 anos, e foi uma grande perda. A morte me matava de medo. Neste ponto da minha existência, vejo o luto como um tempo bem interessante justamente porque é um processo, e nada mais. É uma fase. Apenas. Saímos deste processo diferentes do que entramos, posto que é fase. Todos os acontecimentos de nossas vidas nos transformam. Em maior ou menor grau, a vida está em eterno movimento e vamos nos modificando uma gota por dia. Deixando pedaços nossos para trás e elaborando lutos diversas vezes. Mas só com a morte é que podemos nos dar conta do que significa enlutar-se e do tanto que fazemos isto ao longo da vida. Para mim, até a morte adquiriu outro significado e devo este ensinamento a duas pessoas muito importantes para mim: Giovana e Morgana.

Hoje, cinco anos depois da morte da primeira grande amiga, uma irmã que a faculdade me deu, e três anos depois da passagem da segunda, uma irmã que o colégio me deu em tenra idade, posso até dizer que há dias em que parece que a morte delas não aconteceu. Não é mais tão pesado, nem é negação. É uma sensação de que elas estão logo ali vivendo a vida delas, eu aqui aproveitando a minha e que o telefone vai tocar daqui a pouco. Sinto saudades, imagino cenas e telefonemas. Eu me vejo ligando: “Gio do céu, você não vai acreditar no que me aconteceu hoje”! E este telefonema viraria um café na semana seguinte para aprofundarmos o assunto. Porque simplesmente éramos assim. Eu me ouço falando “Ai, Mô, eu fiz esta besteira de novo. Olha como sua amiga é besta” e, em resposta, consigo escutar a risada dela, alta, gostosa e que me levava ao riso também. Na semana seguinte, também nos encontraríamos, e a Mô iria chegar atrasada. Engraçado, ela atrasava sempre, mas saiu do baile da vida muito antes. Curioso, e eu nunca tinha pensado nisso até agora, enquanto escrevo estas linhas. A Gio era organizada e caprichosa, e a doença nunca apagou a fé que ela tinha na vida. Lindo isso também. E eu fui testemunha. Que privilégio, não?

Lembro das manias delas, dos jargões e me lembro de tanta coisa que vivemos juntas. Posso passar a mão nas lembranças do que nós três vivemos juntas. Sim, elas se conheceram. Sim, elas conviveram muito. Sim, elas me conheciam quase como ninguém me conhece. Sim, eu ainda as tenho por perto. Sim, quando tenho um problema, eu converso com elas. Sim, eu xingo e elas xingam junto. Sim, eu conquisto e elas aplaudem junto. Sim, eu queria muito que elas estivessem aqui. E, de alguma forma, elas estão. Elas são eternas em mim. Aqui dentro da minha alma.

Mas, engraçado, não é mais pesado como já foi. É nostálgico. Não penso nelas direto, talvez porque elas estejam comigo de alguma forma. É peculiar este poder que o tempo tem de dar uma aliviada nos sentimentos – e é algo incrivelmente lindo. No meu caso, parece que o tempo deu uma demão de tinta e colocou tudo em outro patamar. Mas eu acho igualmente que o tempo só tem este poder quando lhe é facultado, quando deixamos o luto fluir. Quando sofremos. Quando morremos junto para renascer logo ali, tal qual uma flor desabrocha na primavera. Mas a florzinha precisa começar a morrer no outono e se desmanchar toda no inverno. Fazer enterro com todo o ritual que lhe caiba, seja qual for, para poder reviver na primavera e ser plena no verão. É o que acho, hoje, cinco anos depois.

Morgana vive nos traços do pincel de Rúbia - e também na memória e no coração
Morgana vive nos traços do pincel de Rúbia – e também na memória e no coração

Quando me ligaram para falar que a Gio estava doente, eu já sentia algo muito estranho no ar. Estava amamentando meu filho e ela havia ajudado a organizar o chá de bebê. Ela foi até a maternidade conhece-lo e aí sumiu. Estranho, não? Tudo se encaixou depois. Câncer. Inoperável. No centro do cérebro. Vivemos juntas dois anos de um longo e doloroso processo. Ela foi desaparecendo, ficou seis meses fora do ar e eu fiquei junto com ela em todo este período. Uma vez por semana, praticamente, eu estava lá. Fernando, meu filho, ia junto muitas vezes. Ele nem se lembra disso, mas ele viveu. Está impresso em algum canto do DNA dele este processo de finitude. Dois anos depois, a irmã da Mô me liga. Ela estava no A.C. Camargo, um lugar que eu bem conheci por seis meses, né? Tinha até cadastro atualizado na recepção! E tudo se desencaixou de novo. Neste caso, o processo foi bem mais curto. E igualmente surreal. Em menos de três meses, ela saiu de cena. Em novembro do ano anterior, na viagem do casamento do Samuka, um amigo que a tenra idade deu igualmente a nós duas, conversamos tanto sobre a Gio. Em janeiro, o telefonema. Em março, ela se foi.

Vivi de forma diferente o luto das duas. Teoricamente, o da Gio foi mais intenso pois foi em conta-gotas. E o da Mô mais leve. Mas foi ledo engano. Nos dois casos, eu sofri muito em silêncio por esta minha mania besta de ser forte. Para que? Não sei! Fingi para mim mesma, o que é pior, que estava tudo bem. Que fazia parte da vida. Que piada! Foi justamente com elas que aprendi a começar a morrer nestes outonos para renascer na minha primavera. Acho que este foi o legado deixado por estas duas perdas irreparáveis. Viver tudo de olhos bem abertos é o ensinamento que me trouxe a partida destas duas pessoas que não se foram, de fato, da minha vida.

Rubia Sammarco, 40 anos, é brasileira, mãe de um garotinho muito gentil e sonha com um mundo em que as fronteiras sejam meros desenhos no mapa mundi.