Esse projeto é um convite para quebrar o tabu. Um canal de inspiração e de informação para quem vive o luto e para quem deseja ajudar

Eu não sou plateia

Mariana Rosa é uma talentosa escritora e uma incrível mãe para Alice, uma linda menina de cinco anos que nasceu com paralisia cerebral. Mariana consegue transformar seus desafios em poesia e aqui nos conta sua relação com a morte e seu desejo de vida: "as noites aqui são de dança e eu não sou plateia"

Da primeira vez, a morte se aproximou de mim como um abraço pelas costas. Foi apertando aos poucos, até sufocar. Eu a contemplei no rosto sofrido e frio de minha mãe, ornado em flores e preces, quando já não era mais tempo para suas preferências. A morte, ali, era úmida e escura, um porão que alojou meus escombros algum tempo. Da segunda vez, ela me tomou de frente. Encarou, ameaçou ao limite, enquanto ensaiava o golpe covarde no corpo diminuto e frágil de minha filha. Mas o nocaute teve prazo determinado. Uma pausa de 26 minutos, e a pequena voltou à briga, coração exausto, mas valente.

Ali ou acolá, eu nada pude fazer, a não ser me haver com minha impotência, o que não é pouca coisa. A impotência é esse muro que nos coloca para fora, plateia do horror. Mas se é ela que limita a ação, não há dúvida de que potencializa o sentimento. É assim que tenho vivido a morte dia após dia. Fincando, doendo, rasgando. Uma latência que abre espaço – na marra – para mais vida.

Se a morte é um revés, o morrer é um processo do qual é possível recorrer. Vou aprendendo a observar seu flerte comigo, estabelecendo limites. Adio minha morte cada vez que renuncio à repetição de padrões e escolho produzir sentido autêntico. Adio minha morte quando me acolho vulnerável e peço ajuda. Adio minha morte quando reconheço o imprevisível que é viver, e sua infinidade de nuances que ainda não sei, mas quero conhecer. Adio minha morte quando compreendo que ser gente não é algo fixo, acabado, mas uma ponte, um trânsito de escolhas. Adio minha morte quando amo a pluralidade, a diversidade, a impermanência e amplio meu repertório do viver. Adio minha morte quando não nego o sofrimento, faço da dor um impulso vital. Adio minha morte quando aceito que a vida é mistério que transborda qualquer plano.

Nem sempre é fácil. Dói isso de contestar o morrer, sem negar a morte. Confunde, desordena, embaraça. Dói, sim. Mas o contrário disto me parece ainda mais assustador: a anestesia, a paralisia, a abnegação, a morte a conta-gotas. Meu fascínio pela vida é grande o suficiente para querê-la toda, inteira, luzes e sombras. Suporto o caos com o consolo de Nietzsche: “é preciso ter o caos dentro de si para dar à luz uma estrela bailarina”. A vida segue desobediente, as noites aqui são de dança e eu não sou plateia.

image1

Mariana Rosa 

Sou jornalista por profissão e escritora por gosto. Sou facilitadora de grupos de apoio de famílias de pessoas com deficiência e ativista da diversidade e da inclusão. Mas o meu principal predicado é o de mãe da Alice. Desde que ela nasceu, não há um só dia em que não aprenda um jeito novo de ver a vida e de abraçar o mundo por ela, e com ela. A paralisia cerebral é condição que a coloca em permanente estreia diante da vida. Provocada por ela, eu também me descubro, todos os dias. Conto nossas histórias nas nossas páginas do Diário da mãe da Alice no Facebook e no Instagram.