Esse projeto é um convite para quebrar o tabu. Um canal de inspiração e de informação para quem vive o luto e para quem deseja ajudar

Presente no Dia das Mães

Neste dia das mães, vamos lembrar que a dor da ausência pode ser atenuada por pequenos rituais amorosos: uma comida gostosa, música, boas lembranças, fotos ou presentes simbólicos. O jornalista Felipe Mortara escreveu uma carta para a sua, que partiu há menos de dois meses.

Todos que passamos por perdas muito próximas e dolorosas, sabemos que, embora o luto não tenha prazo pra terminar, o primeiro ano é, geralmente, muito duro de ser atravessado. Digo geralmente porque, em muitos casos, o enlutado pode estar ainda amortecido pelo choque ou muito acolhido pelos amigos e familiares, o que torna o primeiro ano até menos solitário do que os muitos que virão pela frente.

De qualquer modo, as primeiras datas comemorativas são simbólicas e marcantes para qualquer dos casos. E aqui estamos nós, diante de uma das mais significativas, o Dia das Mães, com o coração apertado com o pensamento nos filhos que já não a tem por perto. E nas mães que passarão seu dia sem os filhos que partiram.

Na nossa cultura latina, o dia de homenagear as mães não é apenas dedicado a elas mas também organizados por elas. São elas, as mães, essas figuras mestras da vida das famílias, que reúnem em torno de si os filhos, são elas que vão inspirar, produzir e transformar a data em um ruidoso encontro em torno de uma mesa, que vão orquestrar tudo o que acontece, o que se come, onde se vai, quem estará ali. Não por acaso, a ausência da mãe no Dia das Mães deixa o buraco da sua enorme presença e também sem rumo a família ancorada em sua figura central. As novas famílias já estão deixando mais fluida essa dinâmica, tornando pais, padrastos, madrastas, irmãos, filhos de um ou de outro, os protagonistas de um mosaico mais democrático e menos centrado numa única figura. Mesmo assim… que difícil o Dia das Mães sem a mãe. Para os filhos sem ela e para elas, sem os filhos.

Não há regras para o luto, mas a gente sabe que as mesmas datas que aportam tanta dor, também oferecem a oportunidade de reflexão, ritualização e conforto. Trazer a memória de quem partiu para dentro de um encontro familiar (vale até o digital), ou de um simples almoço bem gostoso, celebrado entre poucos, como pede o momento da pandemia, pode aquecer o coração como os aromas de uma comida gostosa e uma taça de vinho. Falar sobre quem partiu, trocar memórias, rever fotos e casos, escrever, tudo pode atenuar a saudade neste dia tão especial de celebrar o amor por quem nos honrou com sua vida.

Pensando na dureza de quem está passando pela data sem a mãe pela primeira vez (infelizmente são milhares os novos órfãos e órfãs de vitimas da Covid), conversei com um amigo, o jornalista Felipe Mortara, que perdeu sua mãe, Maria Lucia, há menos de 2 meses. Maria Lucia Cardoso de Almeida era uma cientista brilhante e respeitada, que nunca deixou de acumular sabedoria em diversas áreas. Adorava ler, estudar, viajar e vivia sozinha em um apartamento em uma zona boêmia da cidade de São Paulo, com um terraço especial, mais de 300 vasos de plantas e duas gatas.

Felipe, o filho único, define a mãe como genial, teimosa e perfeccionista. Ela faria 66 anos no último dia 30 de abril. Aniversariava muito perto do Dia das mães mas dizia que fazia questão de ganhar dois presentes  – ele que ousasse dar apenas um para celebrar as duas datas. Neste ano, Felipe já tinha comprado os dois, como conta nesta carta para ela.

Os presentes estão entregues, Felipe.

 

Felipe e Maria Lucia, em sua última viagem juntos, na Praia da Pipa, Rio Grande do Norte
Felipe e Maria Lucia, em sua última viagem juntos, na Praia da Pipa, Rio Grande do Norte

Carta de Aniversário

 

São Paulo, 30 de abril de 2021

 

Parabéns, Mãe! Hoje você completaria 66 anos. Ou completa, não sei. Ainda não consigo te incluir no passado, nem no futuro do pretérito. Você parece estar só sumida há alguns dias, entocada no seu matagal improvável no coração boêmio e de meretrício da Rua Augusta. Lendo jornal e tomando sol no seu querido jardim de inverno. Logo ali, no tempo presente.

Há exatos 46 dias você mudou de casa, quando te enterrei no túmulo do cemitério do Araçá, que você reformou com a Vovó lá em 2007. Preparavam juntas a terna morada familiar e você se foi antes dela. É surreal pensar nisso e que ela não sabe e nem saberá de sua partida. Sim, essa omissão, me dói sempre que lembro dela. Porém, convenhamos, é uma omissão do bem.

Parece que logo mais vou jantar na sua casa, te levar um presente que eu achei o máximo. E (possivelmente) te ouvir dizer que escolhi mal, mas que daqui a dois domingos terei a chance de me redimir no Dia das Mães. Pois é, você sempre ligou mesmo para o Dia das Mães. Certa vez fez questão de frisar que exigia dois presentes todos os anos e que pouco importava a proximidade das datas. Pois bem, eu já tinha me preparado para esse ano.

O de aniversário era um super vestido bonitão que apareceu num estande descolado no Aeroporto de Guarulhos. Como você sempre fez compras em qualquer lugar, e que a estampa colorida e floral lhe agradaria na certa, não hesitei. Estava embrulhadinho à sua espera desde janeiro. Sábado passado, durante uma doação de roupas suas, dei o vestido para sua irmã Ana Maria, que adorou e ficou ótima nele.

Mas preciso confessar que o presente do Dia das Mães já é mais dolorido. Principalmente nos últimos meses do ano passado sofremos muito um com o outro. No dia do nosso Natal você falou algo que me deu gatilho de uma crise de ansiedade terrível, bem na sua casa, numa intensidade inédita. Não sei se você entendeu, de fato, o que aconteceu naquela tarde.

Mas meu choro secou, o ar voltou, retornei à cozinha, ajudei Helena a fritar torresmo, comemos uma super feijoada e fiz caipirinha, como você gostava. Com vodka, adoçante e mexedor de passarinho de madeira. Passei mais oito horas na sua casa. Na hora de trocar presentes, já de noite, eu estava mais calmo, mas ainda triste. Decidi dar apenas os dois livros que tinha levado, com belas e coerentes dedicatórias, ligando os temas dos livros a assuntos seus que eu dominava muito bem. Histórias que me fazem lembrar de você quando vejo um livro de receitas da Sicília ou sobre as aves do Sesc Bertioga. Essa sua onipresença.

E tinha também uma caneca encomendada especialmente para você. Uma caneca pintada à mão pela minha sogra, Marta, que pinta porcelanas há mais de 30 anos com uma delicadeza e simplicidade que me comovem. Na caneca, um rostinho feminino, bem simples, com um sorriso infantil, pintado em cores alegres e a palavra “MÃE”, em pinceladas felizes. Era meu presente de Natal para você, afinal também dei uma assim para meu pai, meu irmão e minha madrasta.

Mas ali na hora achei que havia amor demais na minha intenção, na encomenda com mais um mês de antecedência. A tristeza e decepção que me envolviam naquele momento o tornavam indigno para te presentear com a tal caneca. Era como se o contexto fosse capaz de quebrá-la simbolicamente dentro de mim.

Misturei-a às minhas coisas antes que pudesse perceber e pensei: “taí um ótimo presente para o Dia das Mães, até lá essa raiva já vai ter passado”. Mãe, como foi duro abrir o pacote da caneca, mas o fiz alguns dias depois da sua morte, e tomo café da manhã com você várias vezes por semana.

Dia desses, passava das dez da noite, eu já deitado na cama escutei alguém xingar um motorista na rua: filho da puta! Pensei que desde que você se foi ninguém me xingou disso ainda e já fiquei imaginando como me sentiria. Porque, certamente, esse dia vai chegar. Quando chegar, espero lembrar rápido de você desviando de algumas garotas de programa na entrada do prédio na Rua Augusta e me dizendo: “Olha que legal, filho, geograficamente você é um filho da puta!”.