Inspiração - Belas Histórias
Onde tem adeus, tem também olá
Erendina Cesário, a Dina, começou a sentir as dores do parto ao mesmo tempo em que as dores da perda iam tomando conta de cada molécula de seu corpo. Ela viu morrer em seu colo a filha Tânia, de dois anos de idade, e duas horas depois deu à luz Beatriz. “Cheguei do hospital com a Tânia, que sofria de um problema no coração, e ela parecia bem fraquinha. Ela tinha tido mais uma de suas crises. Fui balançando minha bebê nos braços, mas percebi que ela estava indo embora… Então pedi para me darem água para jogar na boca dela, mas nem deu tempo. Ela teve um infarto fulminante.”
Pergunto qual é o sentido desse ritual e Dina responde que não sabe dizer e que isso não importa. “Foi assim que as minhas avós me ensinaram”, explica. As avós também lhe disseram que se uma mãe olha para um filho na hora da morte, uma única lágrima desce do rosto da criança. Ela olhou o rostinho de Tânia no momento da partida. E garante: “Eu vi a lágrima”.
Dina vestiu a menina com a roupa cor de rosa do batizado, entregou o corpo à polícia – chamada para fazer a autópsia, obrigatória por lei –, e se deitou na cama para receber Beatriz, a quinta filha de um total de nove meninas e um menino. Ela nomeia as mulheres na ordem de chegada: “Maria Gorete, Nazilde, Valéria, Tânia, Beatriz, Sandra, Eliane, Erondina e Dulcinéia”. E o filho caçula, único homem: “Se chama José, como o pai”.
Aos 78 anos, dona Dina já viu de perto a morte muitas vezes. Enterrou o marido, atropelado por um ônibus há quase 40 anos, e três filhas. Tânia morreu de uma doença congênita do coração, Nazilde partiu aos 43 anos, depois de sofrer um derrame, e Valéria sucumbiu a um câncer aos 52.
Se por um lado ela se deparou com a morte, também já se encontrou muitas vezes com a vida. Acumula experiência nessa história de chegadas – tanto que conseguiu segurar Beatriz na barriga por algumas horas para acompanhar o morrer de Tânia – e em seus últimos partos já nem chamava mais dona Amélia, a parteira. “Só na hora de cortar o cordão eu pedia para uma das crianças ir atrás de alguém. Também me virei sozinha depois que o meu marido morreu. Criei sozinha essa filharada toda, trabalhando como diarista.”
Dina fala sobre a morte com a mesma naturalidade com que fala sobre a vida. Para ela morrer não é uma coisa de outro mundo. Pelo contrário: é apenas o outro lado de uma mesma moeda.
“Esquecer a perda de uma pessoa querida a gente não esquece, mas supera. Vai vivendo um dia de cada vez, devagarinho”, diz, para depois contar orgulhosa que fez questão de carregar a alça do caixão da filha Nazilde. “Quando minha primeira filha morreu eu não consegui acompanhar o enterro por causa do nascimento da Beatriz e foi pior. Toda vez que eu passava na frente do cemitério eu sentia um frio enorme no coração. Parecia que eu estava… acabada. Depois o tempo foi me trazendo de volta, Deus foi me fazendo forte de novo. A morte ensina a gente a lidar melhor com as coisas, então no enterro da Nazilde eu quis viver aquilo de verdade. A gente tem de se permitir viver tanto a alegria quanto o sofrimento, porque os dois têm a sua beleza. Eu acredito que Deus marca o nosso dia de nascer e marca também o nosso dia de morrer. Deus é bom, me deu nove filhas e quando levou o Zé, meu marido, me deixou um menino… Meu único filho homem, que sempre cuidou muito bem de mim.”
Quando o marido morreu, Dina foi ainda mais forte. Não derramou nenhuma lágrima e por isso teve gente da vizinhança dizendo que ela não estava sofrendo. “E do que adiantaria chorar? Com tantas crianças em casa, eu tinha de me manter forte. Na morte dói tudo na gente, mas eu decidi não me entregar à dor. Depressão é coisa do diabo, quero longe de mim! Sempre pedi a Deus para não me deixar ficar doente e com quase 80 anos ainda não tive nada grave… Graças a Deus!”
Com sete filhos, 44 netos e 35 bisnetos, Dona Dina espera viver ainda o bastante para conhecer alguns tataranetos. Ela é sábia: a vida lhe ensinou que traz adeus, mas também traz olás.