Inspiração - Reflexões
A arte de sofrer bem
Dá para ser feliz? Essa é uma pergunta que me acostumei a ouvir depois que perdi, há 15 anos, o meu filho Gabriel, no auge da sua juventude. Instintivamente, ou por nunca ter desistido da felicidade, digo sempre que sim. Algumas pessoas entendem minha resposta como um certo heroísmo pessoal, outras a recebem com desconfiança ou até uma certa indignação: como assim?
Na verdade, não há força sobre-humana, bravata ou alienação na minha convicção de que dá para ser feliz mesmo depois de sofrer maior adversidade que a vida é capaz de impor a uma mãe ou pai. Há, somente, a constatação, experimentada na própria pele, de que a felicidade não requer ter sofrimento zero. Todos nós queremos ser felizes e no entanto, todos nós continuamos a sofrer. Onde há felicidade, há também sofrimento, como luz e escuridão. Fica mais fácil entender o aparente paradoxo através da filosofia budista. Veja o que diz o monge budista Thich Nhat Hanh, em seu livro No Mud, No Lotus: The Art of Transforming Suffering (em tradução livre: Sem lama, sem flor de lótus: a arte de transformar o sofrimento):
“A arte da felicidade é também a arte de sofrer bem. Quando aprendemos a reconhecer, abraçar e compreender nosso sofrimento, nós sofremos muito menos. Mais que isso, podemos ir além e transformar nosso sofrimento em compreensão, compaixão e alegria para nós mesmos e para os outros”. É o mesmo princípio que nos levou à missão deste site: falar do luto e da dor da saudade das pessoas amadas que morreram para ajudar as pessoas a transformar a dor, a conviver melhor com a ausência.
O mestre budista ensina que uma das nossas maiores dificuldades é aceitar que não existe um lugar onde só haja felicidade e nenhum sofrimento. Pensamos no sofrimento como um obstáculo à felicidade, e, portanto tentamos encobri-lo, enganá-lo. No entanto, diz Tich Nhat Hanh, se não formos capazes de encarar nosso sofrimento, a felicidade continuará a nos escapar. O monge vai mais longe em seu ensinamento: se tanta gente tem um enorme sofrimento e não sabe lidar como ele, as escolas deveriam nos ensinar a entender nosso sofrimento desde crianças. Concordo totalmente com essa visão, assim como deveríamos pensar em educar as crianças para a morte que será o tema de um próximo post.
Como abraçar o sofrimento
A consciência plena, a melhor tradução que encontrei para o termo em inglês mindfulness, é, segundo o budismo, o melhor jeito de estar com nosso sofrimento sem ser dominado por ele. A consciência ou presença plena é a capacidade de lidar com o momento presente, de saber o que está acontecendo aqui e agora. É saber o que está acontecendo naquele exato momento: estou levantando os braços, movendo as pernas, lavando a louça, escrevendo este texto, estou plenamente nesta ação presente e nesse estado de atenção absoluta consigo reconhecer o meu sofrimento e abraçá-lo ternamente.
Como gerar esse estado de mindfulness? A resposta do monge é muito simples: a forma com a qual começamos a produzir o remédio da consciência plena é parar e respirar. Isso mesmo: quando prestamos atenção ao ato de inspirar e expirar nós unimos corpo e mente e voltamos a nós mesmos. “A boa notícia”, ensina o mestre, “é que essa integração pode ser obtida através de uma única respiração. Reconhecer a tensão, a dor, o stress nos nossos corpos alimenta a nossa atenção plena e este é o começo da cura.”
Se olharmos e reconhecermos nosso sofrimento interno teremos mais clareza, energia e força para ajudar a cuidar do sofrimento dos outros. Se estivermos preocupados com nosso medo e desespero não conseguiremos amenizar o sofrimento, nem o nosso, nem o de ninguém. “Alimente as sementes positivas” ensina Thich Nhat Hanh. “Todos nós temos muitos tipos de sementes vivendo na nossa consciência. Aquelas que regarmos, florescerão. Portanto, se temos o inferno dentro de nós, temos também o paraíso. Somos capazes de ser compreensivos e alegres. Se prestarmos atenção apenas nas coisas negativas em nós, especialmente em mágoas passadas, estaremos afundando na tristeza e não nutrindo nada positivo. Nós podemos praticar a consciência plena para regar nossas qualidades, tocando naquilo que temos de bom dentro de nós“.
Volto a pergunta inicial deste texto: “Dá para ser feliz?” Claro que sim. Com todo o sofrimento, a dor e a saudade que venho aprendendo a abraçar todos os dias.
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