Inspiração - Belas Histórias
A coragem de abraçar a dor
A breve e intensa história da maternidade de Cecilia, a primeira filha de Clarice Chiquetto e Felipe Datt, ambos jornalistas, começou com um parto normal, a alegria do nascimento de um bebê de mais de 3 quilos, mas seguiu com o primeiro de muitos sustos: os batimentos cardíacos do bebê eram muito baixos, indicativos de alguma condição anormal. Foram 16 dias na UTI para debelar um quadro de infecção indicado por baixos neutrófilos. Clarice descreve assim a chegada, afinal, da filhinha à casa: “Cecília teve alta no último final de agosto. Assim que pisamos em casa, desabei e chorei todos os litros de força que tinham ficado guardados durante todos os dias dela de UTI. Quando recuperei as forças, um alívio enorme apareceu.”
Cecília ainda exigia cuidados especiais para a amamentação, que foi estimulada com auxílio de fonoaudiologistas e necessitava de exames e consultas constantes já que fora diagnosticada com neutropenia infantil, uma doença rara, pouco conhecida. Apesar dos cuidados médicos e da necessidade de um maior isolamento do bebê, que não podia tomar vacinas devido ao seu quadro, foram meses de muita alegria. Durou muito pouco.
Cecília faleceu nos seus braços, mamando, ao voltar de carro de uma consulta médica. Das horas que pareceram uma eternidade, Clarice recorda flashes vívidos da solidariedade dos vizinhos , da paciência infinita dos paramédicos da ambulância, das tentativas de reanimação e da certeza cruel de ter sufocado a filha com seu leite. A autópsia e o posterior mapeamento genético mostraram que ao menos esse pesadelo não era real: o bebê não morreu sufocado, tinha uma rara doença genética imunológica que provocou uma pneumonia assintomática.
A vida sem a pequena trouxe muito sofrimento mas não impediu que a mãe abrisse o coração sem medo de viver seu luto. Como ela repete, nunca falou tanto sobre si mesma e sua filhinha, nunca escreveu tão abertamente sobre sua história e respeitou os sentimentos mais dolorosos que surgiram diante da tragédia pessoal: admite que ainda não consegue olhar para outros bebês na rua, tem dificuldade de conviver com as colegas de trabalho que, coincidentemente, estavam grávidas no mesmo período. Faz terapia do luto, fisioterapia de liberação miofacial para relaxar a musculatura do corpo, consulta uma nutricionista para cuidar da alimentação e, o mais importante, chora quando tem vontade: no trabalho, em casa no jantar, no trânsito. Ainda foge das reuniões de família e não se envergonha de dizer que sente muita raiva. Tem lido livros, conversado com outras mães enlutadas e seguindo nosso site Vamos Falar Sobre o Luto. Não quer se entregar à dor, mas não pensa em passar por cima dela.
Com o seu consentimento, reproduzimos aqui alguns posts de sua página do Facebook que expressam muito da sua jornada de luto.
“Mas você parece normal, não parece que passou pelo que passou”. O que é parecer normal? É continuar acordando, levantando da cama, indo pro trabalho, dirigindo, caminhando na rua? “Mas você é tão forte”. O que é ser tão forte? É continuar acordando, levantando da cama, indo pro trabalho, dirigindo, caminhando na rua?
Sempre que escuto isso, me pergunto: qual minha outra opção? Qual seria ela, que não deitar na cama, me encolher, e nunca mais levantar? Se tenho vontade de fazer isso? Todos os dias.
Não, eu não estou “normal”. E, não, eu não sou “tão forte”. E ainda parece que foi tudo ontem.
Mas sigo adiante, vivendo aqui na minha realidade paralela, que só eu habito. Primeiro porque, de concreto, é a única opção que tenho. Seguir adiante é trazer menos dor para pessoas que amo muito e, por conseqüência, menos dor pra mim mesma.
Segundo porque, envolta numa onda tão forte de amor, carinho e acolhimento, de todos os lados – amigos antigos, amigos novos, família distante, família próxima, trabalho, fisioterapeutas, psicólogas, nutricionista, e mais um bando de gente com quem convivo, do tintureiro ao moço do estacionamento –, não poderia ser diferente.
Só por isso consigo seguir adiante. Só por isso consigo levantar da cama todos os dias. Só por isso consigo passar um café, preparar um relatório, editar um texto, negociar com um britânico uma publicação, dirigir no trânsito, ir ao supermercado, tomar banho, fazer um curso.
Não fossem os almoços, jantares e cafés com amigas muito queridas (uns pré marcados, outros repentinos e salvadores de dias horríveis), ou com um amigo, também muito querido, as longas sessões de fisioterapia com papos intermináveis, as longas sessões de terapia, as dezenas de mensagens recebidas aqui, as outras tantas conversas de whatsapp, não seria possível.
Não fosse o amor imensurável por meus pais, meu irmão e meu marido, não seria possível.
Na dor, não fosse o amor, seguir seria impossível
A limpeza do buraco
“Você é um paciente diferente”, ouvi da terapeuta de luto ao fim do nosso primeiro encontro. “As pessoas chegam aqui querendo fazer a dor sumir, me dizem ‘estou aqui pra você me ajudar a curar e tirar essa dor de mim’, e eu passo várias sessões para explicar que não vou tirar a dor delas, que elas precisam viver a dor da melhor forma que for possível, e não fugir dela, para não ter reflexos lá na frente”.
“Você chega aqui dizendo o contrário. Que as pessoas querem te tirar a dor, que sentem necessidade de te ajudar a fazer ela sumir, mas que você não quer que ela saia assim, quer viver e entender ela melhor, pra passar com mais tranqüilidade pelo que está vivendo. Vamos ganhar várias sessões pulando essa parte inicial do porquê não estamos aqui pra fazer a dor sumir”.
Desde o início, eu já sentia um incômodo quando notava pessoas fazendo algo com o objetivo de tentar tirar de mim a minha dor, porque não importava o que fosse feito ou falado, ela simplesmente não iria embora assim. Não só não iria sumir tão cedo, como eu não queria esconder, fugir e fingir que ela não existia.
Hoje, quase cinco meses e muita terapia depois da morte da florzinha, eu sei que essa dor agora também faz parte de mim. Faz parte do meu processo de superação e entendimento do que aconteceu. É algo pra eu ir digerindo aos poucos, conforme for ficando com o peito menos apertado, a ânsia de vômito mais rara, a dor de cabeça e o choro menos frequentes. E tudo bem ela aqui, ela é uma peça muito importante para eu conseguir enfrentar todo esse longo processo.
Às vezes um incômodo pros outros – o sofrimento, ainda mais de alguém que gostamos, incomoda, e muito -, eu preciso viver o meu luto, e a dor que o acompanha. No momento certo, que é agora, para depois não deixá-los tomar conta da minha vida lá na frente, quando baterem de uma vez. Mesmo quando eles se forem, já entendi que meu buraco no peito não vai embora nunca. Mães de anjo, não importa se há anos ou décadas, todas dizem o mesmo. Você aprende a conviver, mas o buraco fica para sempre.
É doído pensar isso? É, é doído. Mas procuro limpar bem esse buraco, pra que quando ficar só ele, seja um buraco cheio de amor, como meus meses com a Cecilinha aqui. Sem sentimentos escondidos ou repreendidos, sem dores guardadas e mal cuidadas lá no fundo, sem sujeiras que vou descobrir só lá na frente.
Vivo isso pro luto, talvez o mais difícil deles (nem nome pra essa perda tem, como tem pro órfão, pra viúva…). Mas vale pra qualquer grande ruptura da vida. Quanto mais ignoradas pela correria, pelo incômodo da demonstração de dor, mais sujeira e sentimentos ruins vão sair de nossos buracos escondidos lá na frente.
Entender, procurar fazer essa faxina interna e limpar esses buracos não devia ser algo que me faz uma paciente diferente, devia ser algo que fazemos sempre que possível, tornando nossas vidas mais leves e mais serenas. Mais prontas pros próximos amores que virão preencher esses espaços já limpos. É o que tenho procurado fazer.
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