Esse projeto é um convite para quebrar o tabu. Um canal de inspiração e de informação para quem vive o luto e para quem deseja ajudar

Bonecas feitas com saudade

Flavia Coradini ganha a vida escrevendo. Mas quando seu pai morreu, ela se viu muda e incapaz de colocar seus sentimentos no papel. Começou a fazer bonecas de pano, do seu jeito, sem qualquer experiência para aquilo, e encontrou nessa sua nova atividade aprendizados importantes sobre o luto que vive

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“No dia 30 de abril de 2017 eu perdi meu pai e não consegui escrever uma palavra sobre isso. Talvez a maioria das pessoas que perde o pai também não escreva nada. Mas sobre elas não deve existir a pressão que eu senti. Como assim não escrever? Logo eu, que vivo disso, não conseguir elaborar nada. Logo para ele, nem uma frase?

Eu vi que chegaram mensagens, vi o telefone tocando, o nome dos amigos na tela. Mas não atendi porque eu sabia que iria ficar muda, engasgada. Para responder, usei emojis de coração, de flor, mas até hoje não sei o que dizer. Não sei o que fazer. Não sei nem mais em que cidade quero viver. Estou perdidaça.

Eu precisava ocupar e organizar minimamente a cabeça. Então lembrei que tinha uma sacola com tecidos, linhas, agulhas, tesouras e bastidores de bordado. Comprei tudo isso há quase um ano, porque um dia eu gostaria de tentar fazer bonecas de pano. E, mesmo sem ter habilidade nenhuma, mesmo sem nem saber que o nome daquele círculo de madeira para bordar era bastidor, decidi que o dia chegou. Comecei sem ter ideia se ia terminar. Sem molde nem técnica nenhuma. Fiz um rascunho do único desenho de rosto feminino que sei fazer direto sobre um pedacinho de pano e fui bordando. Um ponto de cada vez. Sem máquina de costura nem nada que pudesse agilizar o processo. Claro que o acabamento não ficou incrível mas era a primeira vez e eu decidi que faria do jeito que conseguisse. Um lado do rosto não ficou igual ao outro, o braço direito ficou com a costura no meio, o esquerdo, não. Eu não fiquei satisfeita com as mãos, mas tudo bem. A boneca é muito imperfeita mas eu fui achando linda e cheia de personalidade mesmo assim e por isso mesmo.

Foi quando eu estava pensando em colocar uma caneta bic por dentro do pescoço, como suporte para o peso da cabeça, que me ocorreu: gente, quanta metáfora sobre essa coisa toda do luto. Olha que louco. Minha inexperiência e incapacidade de lidar com a perda e com a costura. A imperfeição, a coisa de fazer do jeito que for possível, a falta de moldes ou de um padrão e o meu jeito único de sentir, tão diferente dos relatos das outras pessoas que também perderam seus pais. A caneta sendo usada não para escrever, mas para segurar o peso da cabeça. Sem querer, eu tinha encontrado uma espécie de terapia ocupacional das mais eficientes. Enquanto costurava eu chorei tanto, tantas vezes. Porque lembrava o tempo todo dos momentos tristes e tão recentes. Tenho certeza que minhas lágrimas estão no tecido, na lã do cabelo ou na fibra que preenche o corpo. A fibra. Mas a boneca não foi feita com tristeza. Pelo contrário, era a única coisa que eu sentia vontade de fazer e que me dava alguma satisfação.

Enquanto fazia a Amy, já pensava em fazer a Nina Simone, depois a Frida, talvez a Carmen Miranda. Todas mulheres de quem eu sou muito fã e que também deixaram saudade no mundo. Sem nenhuma pressão nem peso eu percebi que estava fazendo planos. Para um futuro próximo, mas já era alguma coisa. Quando eu via, já eram 5 da manhã e eu ainda estava pensando em como fazer o vestido. Aí veio a ideia do nome Miss, muito mais pelo significado do verbo. Bonecas feitas com saudade. Aí eu comecei a fazer anotações. Aí eu fotografei o work in progress e mostrei para alguns amigos, aí eles (disseram que) adoraram e só aí eu consegui escrever este texto.

Minha homenagem para meu pai não foi possível através do que eu sabia fazer. Precisei me dedicar a algo que nunca tinha feito antes e insistir por dias até conseguir fazer com amor. A dor que eu nunca tinha sentido antes só começou a ser amenizada assim. As duas coisas são só um começo. A Amy ainda não está pronta porque cada vez que eu olho, penso em fazer mais alguma coisa, cuidar de mais algum detalhe. Parece que falta pouco mas, quando vou fazendo, percebo que tem tanta coisa ainda para melhorar. Comecei pela cabeça porque me pareceu a parte mais fácil mas, quando o resto foi ficando pronto, vi que vou precisar fazer outra nova. Olha só. Mais metáforas.”

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Sobre seu pai:

“Meu pai, Ivan, morreu de câncer as 75 anos. O primeiro diagnóstico foi em 2014, câncer no intestino. As metástases apareceram na metade de 2015 e o tratamento teve que ser continuar. Então eu pedi demissão da agência em que trabalhava em São Paulo na época e mudei para Florianópolis, para poder ficar mais perto dele e da minha mãe, que moraram a vida toda em Caçapava do Sul, interior do Rio Grande do Sul. Na minha cabeça, eu tinha a missão de fazer com que eles tivessem momentos mais alegres. Tentava fazer com que ele olhasse para tudo de um jeito mais suave, otimista e até divertido. Mas foi ele quem mais conseguiu fazer isso, rindo e fazendo piadas com as situações mais complicadas até quase os últimos dias. Ele enfrentou quase 3 anos de quimioterapia mas teve um último mês muito difícil, hospitalizado e sofrendo as consequências do avanço rápido da doença. Morreu muito jovem ainda, algo que ninguém na minha família esperava que fosse acontecer porque ele sempre foi um homem muito forte. Não lembro de tê-lo visto doente em alguma vez na vida. Tinha cara de bravo mas era um homem muito engraçado e divertido, um ótimo contador de histórias. Sempre muito justo e honesto. Trabalhou até o final no seu escritório de contabilidade. Ele foi uma grande influência na pessoa que eu sou. Somos fisicamente muito parecidos e temos em comum muitos traços de personalidade. Sempre fomos muito teimosos e tivemos muita dificuldade de falar sobre nossos sentimentos. Eu, por ser de uma geração mais “suave”, acho que consegui lidar com isso um pouco melhor do que ele.”

 

Flavia Coradini é redatora publicitária e vive em Florianópolis.