Inspiração - Reflexões
Crônica de agosto: meu aprendizado com a morte
Meu primeiro contato com algum evento relacionado à morte aconteceu por volta dos 15 anos. Antes disso, eu havia experimentado a vivência da morte próxima a mim, mas sem sofrer um impacto importante. Já na infância, meus avós paternos faleceram mas, pela minha pouca idade, fui poupada de participar de todos os rituais funerais. Também na infância, lembro-me de duas mortes de crianças próximas: uma colega de classe morreu atropelada na porta da escola e outra morreu de leucemia. Lembro-me também agora, no momento em que escrevo este texto, da morte da mãe de umas amigas (por suicídio) e do marido de uma parente do meu pai (por assassinato). Há outras memórias vindo na minha cabeça, mas nenhuma provoca alterações emocionais ou angústia. São só lembranças, nem boas, nem ruins.
O impacto frente à morte começou mesmo na adolescência. Após um fim de semana prolongado a escola notou a ausência de um professor. Nós alunos, comemorando o fato de termos uma aula vaga em plena segunda-feira, inventamos uma musiquinha inocente, plagiando uma outra: “Paco, Paco morreu, Paco, Paco morreu! Para a nossa surpresa, Paco havia mesmo morrido e de uma forma terrível. Suicidou-se com a mangueirinha do chuveiro. O fato serviu para reflexões nas aulas de filosofia e psicologia, o que fez com que eu entrasse em contato com sentimentos associados ao evento. Uma coisa comum entre os alunos foi a inevitável sensação de responsabilidade sobre o ocorrido, talvez por termos inventado a tal musiquinha. Nesta época foram acontecendo mortes de pessoas mais próximas, como a de meu avô materno. Ele morreu de velho e fazia questão de dizer que não tinha medo de morrer. Era uma pessoa muito querida e seu falecimento foi acompanhado de muita tristeza. Nesse momento aprendi, pelos modelos disponíveis, que quando alguém que gostamos morre, choramos, ficamos tristes. Era uma tristeza momentânea que passou rápido por competir com outras coisas boas da época (namoros, festas, viagens, novos conhecimentos).
O tempo foi passando e a maneira de sentir o que era vivido foi mudando. Durante a faculdade de psicologia achava muito interessante a visão fenomenológica-existencial da morte. Nessa fase me identificava com a idéia de que a morte, de certa maneira, move a nossa existência justamente por tentarmos incessantemente escapar dela. Nessa época, convivi com algumas mortes significativas: a de uma tia muito próxima, a de meu querido padrinho a qual eu presenciei, de minha querida avó Dorinha (que aliás vivia suspirando dizendo que já estava cansada da vida), e a de meu sogro que até hoje é encarada com surpresa e inconformismo (como uma pessoa tão saudável, que praticava atividade física todos os dias, nunca pôs um cigarro na boca, que morava numa cidade sem poluição pode morrer de câncer de pulmão?). Estas experiências tornaram o sentido de minhas reflexões sobre a morte ainda mais teórico.
Depois de algum tempo de formada comecei a trabalhar com psicologia hospitalar e como aprendizagem inevitável e imprescindível, iniciei meus estudos sabre o assunto. Minha primeira leitura foi o clássico Sobre a Morte e o Morrer de Kubler Ross, leitura essa que me fez entender que existem mecanismos típicos enfrentados nas situações onde a morte é anunciada. Como trabalhava com uma especialidade oncológica, que atende geralmente pacientes sob cuidados paliativos, o contato profissional com a morte foi um exercício diário. Isso significava trabalhar questões emocionais relacionadas à morte, do ponto de vista do paciente, de seus familiares, da equipe de saúde e por que não, do meu próprio ponto de vista.
Como costumo dizer, por uma ironia do destino, entrei também nesta mesma fase em contato pessoal com uma morte muito próxima, significativa e dolorosa. Perdi meu pai. Tive então que conviver concomitantemente com o conflituoso papel de psicóloga que cuida de pacientes de uma unidade de gastrocirurgia em fase terminal e seus familiares, e familiar de uma pessoa que estava morrendo de câncer no aparelho digestivo. Não foi fácil. Mas eu sobrevivi. Embora tenha, depois de um tempo, desistido de trabalhar na área hospitalar…
O mês de agosto é para a minha família um mês muito especial. Ele é cheio de eventos que marcam a ausência do meu pai. Tem dia dos pais, é o mês do nascimento do meu pai, é o mês da morte do meu pai. Não tem como deixar de pensar que “agosto é mês do cachorro louco”…
E é por isso que agosto é um mês de bastante reflexão. Apesar da lembrança da ausência ser constante e ainda dolorosa, faço todo o possível para extrair tudo de bom que esta experiência trouxe pra mim.
Meu pai era um super-herói, no sentido de eu sempre achá-lo imortal. Com ele eu aprendi a ser honesta acima de tudo, a ter caráter, a respeitar os mais pobres, a ter fé, a ter muitos amigos, a gostar de música, de cerveja, de futebol, a viajar, a curtir a vida. Pena que durou pouco…
Aprendemos muito com sua partida. Ele lidou muito bem com a situação dizendo que tinha vivido intensamente tudo o que precisava viver e que se pudesse faria praticamente tudo do mesmo jeito. Tento me lembrar disso todas as vezes que sofro com a saudade.
Além disso, luto diariamente para me engajar no cultivo da VIDA. E é por isso que eu vou sempre fazer todos os meus esforços para viver bem com as pessoas, para não machucar quem eu amo, para valorizar o que as pessoas têm de bom ao invés de focalizar seus defeitos, para conviver em harmonia, para trabalhar em algo que eu goste e que seja extremamente útil, para cultivar hábitos saudáveis, para não complicar o que pode ser simples, para rir muito… Enfim, para viver a VIDA da maneira mais feliz e pacífica possível, porque um dia ela acaba e eu não quero desperdiçá-la.
“Sei que não dá pra mudar o começo, mas, se a gente quiser, vai dar pra mudar o final.”
Fabiana Guerrelhas é terapeuta analítico comportamental, supervisora clínica em psicoterapia e acompanhamento terapêutico do Instituto Inbio em Ribeirão Preto