Inspiração - Belas Histórias
Um jardim para a sua memória
A jornalista Lali Mareco, de 33 anos, perdeu o irmão León, de 23 anos, vítima de AIDS, em fevereiro deste ano. A morte precoce do Léo, como era chamado, e a sua transformadora experiência com o luto fizeram com que ela refletisse e revivesse a história da sua família, com suas alegrias e tristezas, e decidisse escrever sobre sua trajetória: desde a chegada do bebê “intruso” na sua vida de filha única, passando pelo seu distanciamento, tanto emocional quanto físico (ela foi morar em Belém e os pais ficaram com o irmão em Brasília) até o reencontro dramático e amoroso nos últimos dias de vida do caçula.
Tanto a diferença de idade quanto as diferenças de estilo de vida afastaram os irmãos por muito tempo. Em Belém, onde mora com o marido, Lali vivia, no início do ano, seu próprio drama pessoal, a dificuldade de engravidar e a frustração pelo insucesso de uma tentativa de fertilização artificial, quando recebeu a notícia. León revelou a doença à família apenas um mês antes de morrer. Foi só quando não teve mais forças para cuidar sozinho da saúde, que contou ser portador do vírus do HIV. Nesse momento, infelizmente, já estava debilitado demais para que o seu quadro pudesse ser revertido. Nem Lali nem a mãe sabem dizer se a decisão de ocultar a doença fez com que ele negligenciasse o tratamento possível. A jornalista conta que apesar de ser muito amigo da mãe, uma mulher forte e espiritualizada, o irmão preferiu fazer segredo sobre a doença. Ao viajar para Brasília para acompanhá-lo na UTI e ver o fio de sua vida se apagar lenta e dolorosamente, os motivos que levaram o irmão a agir dessa forma já não importavam. Quando sua morte foi declarada, sentiu, ao mesmo tempo, o alívio e a culpa que costumam abater os familiares de um doente terminal. O que veio a seguir foram muitas mensagens de conforto, o acolhimento de tantos amigos que ela sequer imaginava que o irmão tivesse, uma rede de amor que desconhecia. Nos meses seguintes, compreendeu que precisava de ajuda para enfrentar o luto: começou a fazer terapia e descobriu o #vamosfalarsobreoluto.
“Eu comecei a ler as histórias do site e me emocionei muito com os relatos. Chorei muito, mas também senti um afago no coração. Me fez muito bem abraçar a minha dor. Vi nos depoimentos que o amor tem diversas formas e isso me inspirou a contar aqui a minha própria história de amor pelo Léo“. Esta é a história da Lali e do Leo:
“O dia em que meus pais anunciaram que ele viria continua claro na minha memória. Era legal mesmo esse negócio de ter um irmão? As muitas vezes em que minha mãe passava mal no meio da rua ou que parava o carro pra vomitar me faziam pensar que, talvez, essa coisa de ganhar um irmão talvez não fosse tão boa assim. Quando a vó Maria foi passar uns dias na nossa casa em Brasília, o León estava perto de nascer. Meu quarto já não era só meu. o berço do caçula já estava lá. Foi em 11 de maio de 1993 que ele chegou. A sensação de ter um irmão neném era a mesma de quando conheci minha priminha, Tamara. Assim como considerava a Tamara uma boneca, também achava que ele era meu brinquedo. Mas esse morava na minha casa e quando chorava de noite eu também acordava. Aquele neném que morava lá em casa era uma novidade pra mim. Tudo o que acontecia em torno dele era novidade. Eu estava cheia de ciúmes. Foram longos nove anos sozinha, nos mimos, nas broncas e na bajulação da família. O tempo foi passando e fui me acostumando com a ideia de tê-lo ali. Era bom ter um irmão pequenininho: você pode fazê-lo pegar e levar coisas pra você, botar a culpa do que acontece de errado nele… isso que irmãos mais velhos fazem, né? Confesso: a diferença de idade nunca foi nossa aliada. O tempo passava e ele continuava sendo o irmão mais novo, aquele que você não tem paciência para olhar e cuidar. Crescemos, não no tamanho (valeu genética!), mas na idade. Nos acostumamos a não sermos parceiros. Éramos irmãos. Às vezes conversávamos, às vezes nos abraçávamos. Às vezes quebrávamos o galho um do outro. Da infância para a adolescência dele foi um pulo.
Cheio de querer, ele começou a marcar seus espaços. Já tinha um quarto só dele e um gosto por coisas que ninguém em casa cultivou. Curtia anime, balé, moda e música pop. Tudo resultado de sua descoberta pelo mundo e do mundo do qual queria fazer parte. Um dia decidiu que queria ser estilista, mas sabe-se lá por que preferiu fazer jornalismo. Decidiu, mas depois “desdecidiu”, só não contou pra ninguém. Não estive perto na fase de decisões, nem nos dias em que o abuso de álcool por parte do meu pai afetou o cotidiano daquela casa em que eu já não morava. Ele viveu essa barra. E também viveu a barra de assumir pro mundo quem ele era. Aos poucos, eu fui conhecendo a Leona Luna, a drag queen que ele criou e foi o trampolim para, finalmente, extravasar sua alma de artista. Sempre, desde sempre, ele deu sinais de que seria uma estrela. Só não sabíamos onde: pintando, costurando, criando, dançando. Tudo isso permeou sua essência que ganhou luz em palcos daquela Bras-ilha.
Foi perto da hora do almoço, no dia 30 de janeiro deste ano, que minha mãe me ligou. Passando muito mal e precisando de ajuda para ir ao hospital, León contara para ela que era portador de HIV. Por já ter tido episódios de pneumonia, essa possibilidade sempre rondava as conversas entre eu e minha mãe. Mas ninguém o forçou antes a dizer o que não queria. Mesmo sendo muito amigo da minha mãe, conversando sobre coisas que eu nunca conversei com ela, ele preferiu guardar esse segredo. A notícia veio como uma tempestade: rápida, barulhenta e cheia de trovões na minha cabeça. Depois do primeiro impacto, um vento carregado de muitas perguntas tomou meu pensamento. Sozinha na sala de casa, longe deles, chorei. E agora? Dividi a notícia com o meu marido que, muito mais equilibrado que eu, me acalmou. Todas as diferenças que eu tinha com o meu irmão sumiram depois de alguns minutos em que eu esbravejei pra mim mesma o quanto ele era irresponsável, que ele não tomava jeito nunca. Medo, tristeza, raiva… tudo isso em minutos. Quando a tempestade da notícia passou eu só pensava em como livrar nosso leonzinho – era como meu pai cantava “O leãozinho” pra ele – daquela situação. Dali pra frente foram dias que pareciam não acabar mais em hospitais. Uma rede de pessoas se mobilizou para tornar a internação menos sofrida para ele e para a minha mãe. Da enfermaria para o quarto, de lá para o isolamento, com tuberculose. Até que um dia ele recebeu alta. Estranhamos, mas comemoramos. Foram menos de 24h em casa. Fora do hospital, sofreu todos os efeitos da doença novamente. Voltou a ser internado. O quadro tinha evoluído e ele precisou ser encaminhado para a semi-intensiva. Logo surgiu a necessidade de uma vaga na UTI. Desespero. Três letras que transformam a expectativa em lamento. O que se espera quando alguém vai pra UTI?
Consegui antecipar uns dias de férias e fui para Brasília. Não dava mais para ficar longe. Chegamos, eu e o marido, no fim da tarde de um sábado, já não dava mais tempo para a visita. Mais um dia de aflição sem encontrar o pequeno. No domingo fomos até o hospital, a uns 40 km de distância de casa. Ao entrar na UTI, eu desmoronei: não conseguia olhar pra ele direito. Aquele tanto de fio, ele entubado, inchado, sedado… chorei por alguns minutos até que consegui escutar a voz do marido que já me chamava há um tempo: “Fala com ele”. “Leléo. fica calmo. a gente tá aqui, Leléo. Vai dar tudo certo. você vai sair dessa, né?”, era só o que eu conseguia dizer. Com a sedação moderada, ele balançava a cabeça dizendo que sim. Dali em diante foram seis dias indo todas as tardes passar uma horinha com ele. Durante esses seis dias ele já estava completamente sedado. No sétimo dia eu não fui e minha mãe mandou um recado. “Seu irmão piorou. Acho que você precisa ir no hospital. O médico vai deixar você entrar mesmo que a visita já tenha acabado”. Desespero. Como assim? Piorou como? O que aconteceu? Isso é um aviso? Parecia uma sentença. Corri pra lá. Não foram 10 minutos ao lado do Leléo, mas foi um tempo em que só consegui dar carinho pra ele. Muito carinho. No domingo de carnaval, 26 de fevereiro, chegamos para a visita mas não pudemos entrar. “A médica vai vir aqui falar com vocês”. Sabe quando você faz algo errado e alguém descobre? O coração bate de um jeito estranho, alguma reação química faz a sua garganta ficar travada… foi bem assim. apertei a mão da minha mãe, ficamos sentadas esperando e nada de alguém aparecer. Demorou. Demorou muito. Quando a médica chegou começou o discurso. “O quadro do León evoluiu, vocês sabem, desde ontem” e emendou num monte de palavras que eu nem lembro. Minha mãe cortou :”Ele faleceu? Pode falar de uma vez”. “Sim, infelizmente ele não resistiu. Teve uma parada e nós não conseguimos reverter”, disse a médica. Nós já não olhávamos para ela. Nos abraçamos, choramos, choramos, muito. Uma dor imensa no peito. Minutos assim. Muito ligada a tudo que é espiritual, minha mãe parou por um instante e disse. “Eu senti. Ele esteve em casa hoje. abriu a porta do quarto, me deu um beijo e saiu”. E emendou: “Agora ele está bem”. Eu fiquei pensando em por que não tive esse privilégio, essa sensação, essa oportunidade. Eu tinha tanta coisa pra falar com ele ainda, mas não deu tempo. Ele só tinha 23 anos e por boa parte da vida dele estive com ele, mas não estive. Nós não estávamos nem aí um pro outro e desde que soube da doença eu pensei em tanta coisa que tínhamos que conversar. Por que não fiz isso quando ele ainda estava lúcido no hospital?
Burocracias, decisões, chuva de mensagens impossíveis de responder. No dia 28, velamos seu corpo. Nunca imaginei que pudesse ter tanta gente em volta dele. Minha mãe pediu pra tocar Lulu Santos. O som ficou lá durante todo o velório. Minha mãe queria paz, tranqüilidade e amor naquele momento e foi o que vivemos. “Não é mais que um até logo. Não é mais que um breve adeus. Bem cedo junto ao fogo tornaremos a nos ver”, um coro entoou a canção da despedida, como em todas as despedidas escoteiras. Foi um afago para os nossos corações. Optamos pela cremação. Minha mãe havia decidido que o León se transformaria em árvores para que pudesse continuar vivo por aí. A primeira foi plantada justamente no grupo escoteiro do qual fizemos parte por muitos anos e que ele frequentou desde que estava na barriga dela.
Sete meses se passaram. A dor ainda não foi embora. Ela vai e vem. Às vezes suave, às vezes como um soco no peito. Sei que é um processo. Os questionamentos diminuíram, tento aceitar que tudo é aprendizado. Aprendi que amor é sempre amor seja qual for sua forma de manifestação. Nunca me dei conta do tamanho do amor que eu sentia pelo meu irmão até o início deste ano e isso foi avassalador. Nunca me dei conta que a AIDS ainda pode ser destruidora e que muita gente não pensa nisso. Estamos em 2017 e as pessoas ainda morrem em conseqüência dela. As famílias ainda são questionadas se a causa pode ser declarada na certidão de óbito, reflexo de todo preconceito que a doença carrega. A dor traz reflexão em diferentes aspectos da vida. A perda faz os dias seguirem lentamente e, inexplicavelmente, o sofrimento se transforma em amor. Hoje, meu irmão está mais presente em mim do que eu consigo descrever. Todas as lembranças florescem um pedacinho novo dele em mim. Espero ser um jardim para a sua memória.