Inspiração - Belas Histórias
Florescendo na arte
Pesadelo
Parecia estar tudo perfeito, até aquele ultrassom. Com 32 semanas de gestação, na época, eu não percebia ainda que era a minha intuição que gritava há tempos para fazer uma última checagem antes da reta final. Achava que era dessas besteiras de mãe de primeira viagem que quer ficar vendo o rostinho do bebê antes do tempo.
Malformação. O exame não era claro sobre o que Anahí tinha, nem qual a gravidade, qual seria o tratamento adequado ao nascer, nem se ela poderia nascer de parto normal, ou mesmo se poderíamos esperar o trabalho de parto começar. Era tudo um mistério, mas parecia ser muito sério, muito grave. Chegamos em casa, meio levitando, meio anestesiados, alternando entre se jogar nos travesseiros imaginando os piores cenários possíveis, e ficar fortes um para o outro, olho no olho, confiando que tudo ficaria bem.
Foi muito importante fazer acordos sobre o jeito que queríamos contar para as pessoas, para quem contar, o que não dizer, que tipo de ajuda pedir. Assim, fomos criando um pequeno núcleo de apoio, com quem não precisávamos guardar segredos e contar mentiras brancas de Tá Tudo Ótimo. Então, quando Anahí quis nascer, prematura, e com a saúde bastante frágil, não foi uma grande surpresa para todo mundo. Ronny e eu tínhamos nos preparado para quase todas as situações possíveis, e ficamos unidos, consolando os amigos, irmãos, tios e avós dela que estavam em choque com a perspectiva REAL de perdê-la tão cedo.
Presença
Agora vejo como estávamos fortes, naqueles 3 dias no hospital. Tenho certeza que foi o parto natural, do jeitinho que foi, imperfeito mas tão transformador e amoroso, que nos catapultou para esse estado de espírito de tanta Entrega e Presença. Mesmo sem um recém nascido no colo para nos ensinar na pele como é Viver 100% no Momento Presente, estávamos aprendendo de uma forma ou de outra. Tínhamos vivido as últimas semanas dentro de um pesadelo cavernoso e escuro sobre o nosso futuro com ela. Por isso, durante seus 3 dias de vida, já tínhamos acostumado os olhos com o breu e podíamos ver claramente a sua luz. Nascer é ser farol. Anahí era uma fogueira.
Olho para trás e vejo como eu fui sábia. Me agarrei nas mínimas dádivas que recebíamos da vida: Os médicos dedicados e sua incansável vontade de manter a vida, nossa ousadia em tirar fotos e fazer vídeos dela na UTI Neonatal, os rezos e preces que inventávamos e nos deixavam abertos e calmos, nossa despedida cheia de cantorias amorosas, tê-la no meu colo uma única e infinita vez, pudemos revê-la depois de 7 dias para um ritual final, e pude mostrá-la orgulhosamente, anjinha, para minha família e amigas mais próximas. Estávamos num cemitério, mas eu era só sorrisos e gratidão.
Apoio
Tínhamos nascido e tínhamos morrido. Foi uma passagem rápida demais para os olhos do mundo, mas tínhamos vivido vidas enormes lá naquele hospital. Estávamos exaustos e precisando colocar para fora toda aquela beleza e toda aquela tristeza. O mundo virtual já acompanhava nossa barriga, pensamos, porque não acompanhar também o nosso luto? Então, contamos nossa linda história de amor por Anahí, até fizemos um videozinho caseiro, e recebemos muitas bênçãos, abraços virtuais, mensagens carinhosas, palavras de apoio e muita gente chorando junto conosco. Até hoje ainda estamos colhendo o amor das pessoas próximas e das desconhecidas que resolveram nos acompanhar mais de pertinho nessa jornada. Ganhamos muitas amigas novas, queridas, amorosas, que sabem estar ao lado, mesmo quando não há muito a dizer. E também descobrimos que os homens nunca aprenderam a cuidar e, perdidos no que devem fazer ou falar, se colocam muito distantes. Lamento muito que Ronny não tenha recebido tanto apoio quanto eu. Ainda temos muito a caminhar nesse processo de acompanhar os lutos uns dos outros. De qualquer forma, estar em comunidade (mesmo que virtual) era justo o que precisávamos para começar o processo de lentamente acreditar que tudo aquilo tinha acontecido de verdade. Até a gravidez parecia tão distante…
No início a dor era como ver um filme sobre outra pessoa. Tadinha dessa mãe, que pena enorme que sinto dela, com esses braços vazios, peitos cheios de leite, tadinha. Ah, essa mãe sou eu? Eu sou mãe? Sou uma mãe sem filha? E só então a dor vinha, em cachoeira. E depois passava, ou o rio ficava mais largo e se acalmava, ou eu deixava de me debater e fluía dentro dele, não sei dizer. Mas diminuía. Logo tudo parecia irreal de novo. Em pouco tempo, a onda de dor voltava com tudo. O mais difícil era dar conta de tantos sonhos que morreram junto com ela. E acolher aquela partezinha dentro de nós que inventava uns motivos estranhos para acreditar que tinha sido tudo culpa nossa. E da sensação esquisitíssima de que tínhamos voltado no tempo, para antes da gravidez, e que nada tinha mudado. Tanta preparação interna para Tudo Mudar Para o Resto da Minha Vida, e de repente nada mudou? Meu corpo não entendia essa loucura.
Hoje compreendo que sentir a dor sem fugir dela é fundamental para o meu corpo e minha história. Tenho uma mãe que se envergonha por se emocionar com qualquer coisa e um pai que não demonstra muito seus mundos internos. Cresci sabendo racionalizar e entender, mas não aprendi a acessar e reconhecer o sentir. Por isso, dor pra mim é sinônimo de libertação, evolução, vida – e não de sofrimento.
Artista em Flor
A segunda obra de arte que nossos corpos e corações nos sussurravam, pedindo para nascer, foi um caderninho de apoio a esse momento do luto. Eu já produzia cadernicos de perguntas, reflexão, autoconhecimento e criatividade há um ano. Era a única coisa que fazia sentido fazer, com todo aquele movimento interno que já se traduzia em pequenos aprendizados sobre a vida. Ronny e eu criamos então um cadernico dividido ao meio. Em um lado, Vivendo o Luto, perguntas que ajudam a desabafar as maluquices que sentimos durante a dor e a saudade. Do outro lado, que chamamos de Vai Florescer, uma ajudinha para refletir sobre as dádivas, os entendimentos, as belezas que chegam no processo de aceitação.
Mas meu coração ainda tinha muita arte guardada. Nos primeiros 40 dias, eu fui coletando dentro de mim, e num caderninho, todas as imagens que apareciam e se repetiam. As imagens vinham de algum lugar que não era o cérebro, então dei muita importância a elas. O peito chorando leite, desperdiçando o néctar da vida; a nossa despedida na UTI cantando pra ela; o sol batendo no seu rostinho no seu caixãozinho cheio de flores; o abraço que dei nas avós; as partes hilárias de viver um parto natural; os desafios da gravidez; tantas viagens de carro procurando casa pra morar; eu no inicio da gestação duvidando da minha capacidade de ser uma boa mãe; minhas frustrações de grávida que quer sonhar com o bebê, sentir sua energia, meditar com ele, intuir seus desejos, ritualizar a gravidez mas não consegue, não sabe o que fazer. No fim, eu sempre soube o que fazer. Ritualizo o luto muito mais do que imaginei que seria capaz.
Pinto a minha dor, bordo a nossa história em uma manta, costuro uma boneca Anahí para dormir agarrada, desenho nossas cenas juntas, planto a placenta no fundo da terra, acendo velas, envio cartas para o astral, crio preces e poesias espirituais, escrevo sobre as confusões emocionais de ser uma mãe meio viva meio morta. Vou inventando símbolos que me aproximam dela (fogueiras feitas de flor, estrelas cadentes e ascendentes, copas de árvore, fogos internos e sopros mágicos..). Vou descobrindo um caminho muito pessoal de conectar com a intuição, de me comunicar com o divino, de aprender com a morte, de focar nesse lindo processo de cura, independente do que o mundo acha sobre a minha tristeza. Entendi que se eu não priorizasse esse momento de viver a morte da Anahí POR INTEIRA, eu arriscava ficar presa na caverna escura para sempre. Minha alma falou mais alto, ainda bem, e é a própria Anahí, e minhas artes, que iluminam meu caminho de volta. Tão bonito. Tão profundo. Minha filha me dá tantos presentes. Inclusive o presente da coragem. Coragem de compartilhar minha história e meu processo, de me expor e de pedir ajuda e coragem de me manter humilde mesmo recebendo tanto apoio, emocional e financeiro, para continuar vivendo dessa forma, artista do luto.
Entrega
Enfim, 8 meses depois, começo a me desapegar dos futuros que não vivemos juntas e vislumbro para nós duas novos futuros. Intuo projetos com mães, artes manuais, empatia, círculos, dores compartilhadas, almas transmutadas. Sonho com lugares longínquos e pessoas sábias me ensinando seus rituais para viver a vida-morte-vida. Visualizo minhas mãos e as histórias e magias que crio com elas alcançando pessoas de todo lugar. Consigo, de alguma forma mística, Confiar que nosso cordão agora ultrapassa as camadas que separam os mundos, que ele é longo e forte e vai seguro de uma margem à outra. Respiro mais tranquila quando penso sobre o resto da minha vida: será bela, plena de amor (como sempre foi), cheia de apoio (como tem sido cada vez mais), e as tragédias e as tristezas me farão mais íntegra, mais entregue e mais presente (como Anahí me ensinou).
Marina Nicolaiewsky é uma facilitadora de processos colaborativos (por formação), puxadora de brincadeiras coletivas (por diversão), inventora de cadernicos-experiências (por empreendimento), escutadora das dores e alegrias alheias (por dom) e aprendiz de artista (de coração). Sou companheira de vida do Ronny e mãe da Anahí.
Para acompanhar seus projetos, entre em www.marinanica.com