Inspiração - Como eu me sinto, Reflexões
Cala a boca já morreu: precisamos falar sobre morte sim!
Estamos precisando de um espaço para falar sobre morte. Um espaço no qual poderemos construir uma certa intimidade com essa parte da nossa vida. Não precisa ser um relacionamento de melhor amiga, mas pode ser um relacionamento de parente distante, pelo menos. Daqueles que a gente não vê com frequência, mas sabe que vez ou outra pode aparecer numa festa de aniversário que decidimos chamar umas pessoas a mais, ou naquele natal que convidamos uma parte da família que não é tão chegada, mas é família também e o natal tem essas coisas…
Comigo foi assim: meu avô morreu em um natal e meu pai morreu num domingo daqueles que tem aniversário de família. E é muito estranho, porque apesar de conhecermos a possibilidade de morrer desde que nos entendemos por gente e sabermos de cor todos os ditados populares sobre a certeza da morte, ainda nos permitimos surpreender quando ela aparece. Seja na notícia de uma doença grave, ou em uma morte repentina e trágica: o susto inicial sempre vai existir. Por mais conscientes que estejamos da nossa finitude, a gente nunca está esperando ansiosamente por essa surpresa. No entanto, ter um relacionamento com a morte, mesmo que de parentes distantes, pode mudar muito o jeito como encaramos a morte e o morrer. Mas por que eu tô falando tudo isso?
Faz menos de 2 meses que meu pai morreu repentinamente: domingo de sol, andando na praia com um amigo, primo da minha mãe. O assalto foi anunciado por causa de uma correntinha de ouro e disparos foram feitos depois que meu pai se assustou e reagiu. Esse fato ganhou muita repercussão na imprensa local, tornando o assunto de domínio público. Desde então eu tenho tido a oportunidade de observar não só o meu processo de luto, mas a reação das pessoas perante algumas situações.
Existe um valor percebido em sofrer por uma tragédia, uma autorização expressa inversamente proporcional ao demérito de reconhecer o sofrimento no dia a dia. Estamos muito ocupados tentando acompanhar os caprichos da nossa mente em relação aos referenciais externos de beleza, felicidade, riqueza e prazer, sem conseguirmos saber o que realmente queremos. E sem reconhecer o quanto dar conta desses impulsos e automatismos nos traz sofrimento e nos torna cada vez menos humanos. A morte se torna um problema dos outros, da Síria, do desabamento, dos políticos corruptos. Pode ser qualquer coisa, menos um assunto a ser falado com carinho e discutido abertamente — em voz alta, principalmente com as pessoas que mais amamos.
“Ser humano não acontece apesar do sofrimento, acontece dentro dele.” – Tradução livre do trecho da fala de Lucy Kalanithi | TedMed 2016: What makes life worth living in the face of death.
E é ai que fica muito nítida a necessidade de termos um espaço para reconhecer o nosso sofrimento e falarmos sobre o fim da vida. Observando essa situação fiquei com a impressão de que pessoas que já estavam sofrendo por mil motivos foram as que mais se sentiram na obrigação de colocar todo o seu medo, revolta e insatisfação para fora como se finalmente estivessem autorizadas a sentir isso tudo. Pessoas que se dizem preocupadas com a minha família e sem conseguirem enxergar o próprio sofrimento ficam totalmente impossibilitadas de nos ajudar. Elas estão paralisadas pelo medo, só conseguem pensar em vingança ou em se mudar de cidade e de vida, numa fuga incessante da realidade. Na tragédia esses pensamentos são super aceitos. No fla x flu da vida contra a morte, quando a tragédia acontece, a morte ganha. E sem aceitar que a morte faz parte da vida, sem criarmos espaço para falar sobre isso com profundidade, nos sentimos derrotados, obrigados a tirar nosso time de campo, deixar pra lá, fugir.
Sabendo que tudo tem fim, inclusive a nossa existência, seria mais fácil aceitar todos os grandes tombos como um caminho natural de pequenas mortes até o fim das nossas vidas? Será que reconhecer nosso sofrimento e aceitar a finitude nos traria um entendimento melhor sobre o que é importante agora? Vamos falar de morte sim, e com isso aprender a viver melhor no sofrimento, e não apesar dele.
Nathalia Petrovich é gerente de experiências na Comum.vc, tem olhado a morte e a impermanência das coisas como uma ótima perspectiva para se viver de forma ampla, no presente.