Inspiração - Belas Histórias
Todos vamos partir. Ela apenas foi embora antes
Sofia nasceu em 2004, mesmo ano em que terminei o curso de Jornalismo. Era (é) minha prima de segundo grau, filha da Karina, uma prima que tem a mesma idade que eu. Até então, eu só convivia com pessoas mais ou menos da minha idade ou mais velhas, com quem eu podia conversar, dar risada, trocar livros, discos e impressões sobre a vida. Achava crianças fofas, claro, e queria que elas fossem felizes e ficassem quentinhas, mas simplesmente, não despertavam meu interesse. Em abril ou maio daquele ano, fui buscar meu vestido do baile de formatura numa costureira perto da casa da Sofia. Entrei para visitar os adultos da casa e fui até ela só para ter uma interação de uns cinco minutos. Então, ela era um bebê de cerca de três meses e eu já a conhecia. Quando a vi mexendo os pezinhos, foi um amor à terceira e quarta vista e vai durar para sempre.
Não acredito em reencarnação, mas uma outra prima, Priscila, já disse que nós temos uma conexão que vem de outras vidas. Seja qual for a razão, existia algo diferente entre nós. Ver Sofia crescendo me fez amadurecer. Entendi como é possível ter trocas tão ricas e aprender com alguém que ainda nem sabe falar. Algumas das melhores lembranças da minha vida vão ser sempre a dela como uma criancinha. Nossas conversas sobre os backyardigans, as vezes em que fizemos colagens ou brincamos de Polly (e ela era tão boazinha, sempre emprestava suas bonecas, se havia alguma outra menina por perto). Quando dei banho nela. As histórias que lemos uma para a outra. O dia em que ela me contou que o pique-nique da escola foi legal, mas estava muito cheio, então não deu para sentar ao lado da Ana Clara, sua melhor amiga, A noite em que ela me disse que ia a uma festa de aniversário que teria pista de dança! Sossô já tinha nove anos, e eu percebi, “meu Deus, como está crescendo”. Na véspera dessa festinha, talvez porque ela quisesse se sentir mais segura e praticar uns passos, nós dançamos juntas no quarto da minha tia, enquanto assistíamos Chiquititas.
No aniversário de 11 anos, eu dei um dos meus livros preferidos para Sofia, “O Diário de Anne Frank”. Para mim, significava um marco, porque percebi que ela estava virando (também) uma pessoa com quem eu poderia trocar discos e impressões sobre a vida. Eu não tinha pressa de ver isso acontecendo, mas achava divertido pensar nas inúmeras possibilidades de encontros com a Sofia adolescente e jovem. Ela me disse que queria morar em Nova York algum dia, quando crescesse, e combinamos de tomar um café lá, assim que ela se mudasse. Foi mais ou menos nessa época que Sofia falava que ia ser jornalista e escritora, o que quase me matava de tanta alegria. Essas são as minhas profissões e eu fiquei pensando que talvez ela me admirasse de algum jeito e, sendo isso verdade (ou mesmo se fosse só ilusão), era o único tipo de admiração que realmente valeria a pena ter nessa vida. O resto é miragem.
Dos 12 anos de Sofia, tenho muitas lembranças tristes, mas algumas alegres bem vívidas. No início do ano, fomos a uma exposição de arte na Casa Fiat, em BH, só nós duas. No Natal, fizemos biscoitos confeitados com a Carol, sua irmã mais velha. Entre uma coisa e outra, em agosto, descobrimos que Sossô estava com câncer no ovário. Esse tipo de diagnóstico sempre chega para a família acompanhado das sombras de todos os filmes sobre o assunto, que sempre acabam em morte e têm a trilha a sonora mais triste do mundo.O diagnóstico saiu à noite. Eu já morava em SP e estava saindo de um restaurante, quase à meia-noite. Descobri que ainda faltava um ônibus sair para BH e eu corri até a rodoviária para pegá-lo, com a roupa mesmo que estava vestindo e sem levar mala. Visitei a cidade, de onde tinha me mudado recentemente, e vi a Sofia muitas vezes nessa época. Fiquei impressionada com seu amadurecimento. Ela chorou por perder o cabelo, claro. Também chorei. Começou a usar turbantes e bonés, Karina, a mãe, providenciou uma peruca com fios naturais quase tão lindos quanto o cabelo dela de verdade, que era escuro, liso e brilhante. Mas Sofia, lá pelo segundo ou terceiro mês de quimio, ficou de saco cheio de se disfarçar e passou a ir para todo lado com a carequinha à mostra mesmo.
Ela fazia químio, enquanto estudava em casa (ficou difícil continuar frequentando as aulas do colégio), apesar dos dias de desconforto, andava sempre de unhas feitas, preferiu fazer químio com adultos, porque achava triste ver as criancinhas menores que ela passando por aquele sofrimento. Fez trabalho voluntário, ainda naquela ano, revisitando crianças com câncer, que ela já tinha conhecido bem antes de imaginarmos que ela poderia ter essa doença. Foi submetida a uma cirurgia, retirou o útero e as trompas, chorou porque não poderia gerar filhos no futuro. Chorei também. Estudou mais um pouco em casa, passou de ano e, em janeiro de 2017, comemoramos porque ela estava livre da doença.
Esse foi um ano particularmente maravilhoso. Sofia ganhou peso de novo. Virou oficialmente adolescente, em fevereiro. Treze anos! Começou a tocar teclado e decidiu que não seria jornalista e escritora, não. Agora, queria ser estilista. Fez aulas de desenho de moda. Viajou e nadou muitas vezes. Puxa, como ela amava nadar com as amigas. Como amava viajar com a mãe e a irmã. Ela ficou linda com o cabelo joãozinho, que é uma das minhas imagens favoritas dela: com esse corte, deitada no gramado e sorrindo, usando uma jardineira preta e blusa listrada por baixo. Postei uma foto em que está exatamente assim,ao lado da Carol, a irmã que ela amava demais. “There’s a light that never goes out” foi a legenda. Ninguém sabia, mas foi o ano da nossa despedida. Eu nunca mais vou poder ouvir essa música, acho.
Quando o câncer voltou, no começo de 2018, exatamente um ano depois de minha família comemorar a saúde da Sofia, passei por um sofrimento diferente. Desespero, porque achava que ela iria ser curada de novo, mas que sempre pairaria essa dúvida para tirar nossa paz. Tive fé e passei muitos dias jejuando. Tive medo. Chorei sentada no chão do banheiro do trabalho. Eu via as publicações que ela curtia, em que suas amigas apareciam saindo e se divertindo, curtindo a vida de uma menina de 14 anos. E eu lamentava tanto por vê-la muitas vezes de pijama, em casa.
Mas ela morava numa casa muito legal. A casa mais legal do mundo, com a Karina, a Carol e minhas duas tias, Fátima e Graça, a quem ela chamava de vovó e voinha, respectivamente, desde criança. Ah, e tinha também o Pluft, o cachorro. E o Léo, o primo do interior, que ia sempre visitar. E o pai, Nino, que a via quase toda noite, quando jogavam vários jogos (ela tinha uma coleção). Minha sensação é que, apesar da reincidência do câncer, de perder os cabelos de novo e de odiar o mal estar da quimio, de sentir saudade do colégio, de querer viver a vida lá fora, Sofia era feliz em casa também. Sem contar que, mesmo durante essa fase, sua mãe sempre tinha umas ideias de passeios repentinos. Até viagens. Carol tatuou um girassol nas costas, porque “Sol” era um dos apelidos. Um dia, Carol escreveu “porque eu sou girassol, você é meu sol…” e aquilo me soou tão bonito quanto eterno e grave. Dessa vez, a doença e as reações ao redor pareciam mais sérias.
O problema mesmo foram as dores, que começaram a ser cada vez mais fortes. Lá pelo mês de abril, os médicos interromperam a quimio e começaram a buscar outro tipo de tratamento, com a ajuda da minha prima Priscila, tia dela. Até encontraram, mas já era tarde. Então, Sofia virou uma paciente para quem eles dariam o máximo de conforto, mas não podiam fazer mais que isso. Só um milagre a salvaria.
Sempre acreditei em milagres. Jejuei mais ainda. Chorei e orei sentada no chão do banheiro do trabalho, diariamente, dentro de algum Uber, em casa, no trajeto BH-SP. Sofia quis ficar só com a família mais próxima nos últimos dois meses de sua vida, maio e junho. Eu fiquei bem desesperada, passei horas em seu prédio e até mandei um bilhete: “Sofia, que saudade de te ver, que vontade de ver. Se der, chega até a janela”. Ela não chegou, ficou de escrever uma carta depois. Pouco depois, ela foi internada. Nesse período, eu não sabia o quanto, mas minha Sossô já estava bem debilitada. Dois meses que mudaram tudo. Eu tinha notícias pelas minhas tias, Vovó e Voinha, que me contavam que Sofia fazia planos: queria fazer milk shake de ovo maltine e queria entrar num banheira, assim que saísse do hospital. Claro, queria nadar e viajar também. Às vezes, as tias contavam, ela ficava com raiva, perguntando por que isso estava acontecendo. Eu também perguntava. Propunha a Deus trocas malucas: e se eu nunca mais comer chocolate ? E se eu desistir de encontrar um cara com quem eu seja feliz ? E se o Senhor pegar meus anos de vida e der para ela ?
A barganha não deu certo. Sofia morreu em 24 de junho de 2018. Naquele dia, eu fui até o hospital e, finalmente, pude vê-la. Estava bem magrinha e respirava com dificuldade. Mesmo assim, um som suave, parecia um pouco os barulhos daquele bebezinho que eu amei 14 anos antes. Como sempre, estava com suas unhas feitas; a cor era um azul marinho metálico. Falei que ela é minha gatinha, que a amo, que fui de SP a BH para vê-la. Meia hora depois, ela morreu. Sofia foi o amor mais puro da minha vida. A primeira pessoa que eu amei, achando que ela não poderia fazer nada por mim. E foi surpreendente porque, ao contrário disso, ela fez tanto, uma transformação profunda, uma revolução na minha vida. Antes e depois de Sofia.
Os dias que sucederam esse momento, são uma névoa na minha cabeça. Não deixei de acreditar em Deus, mas fiquei muito decepcionada. Justamente por acreditar que Ele seja bom e poderoso, como pode uma menina tão novinha assim morrer? Tão boazinha, tão pura, amada por todos. Meu Deus, ela estava esperando para ir à Disney (eu queria ir junto), ela não chegou a ser estilista, nem escritora, nem jornalista, nem universitária, nem outras das mil coisas que ela ainda poderia querer e ser. Por quê? Se ver Sofia crescendo me fez amadurecer, vê-la morrendo fez com que eu envelhecesse milhares de anos.
“Antes, eu nem gostava de crianças, o Senhor deixou eu amar assim, só para tirá-la de mim depois.” Eu conversava com Deus na minha cabeça, o tempo todo, inclusive no banheiro do trabalho. Sempre fui otimista, mas um consolo que eu mesma inventei foi começar a achar este mundo uma porcaria, só para sentir que Sofia não estava perdendo nada. Porém isso não durou tanto tempo. Como o Sol que Sofia foi durante a vida toda, iluminando o que quer que tocasse, sua memória começou a me trazer esperança de novo. Um pouquinho de felicidade. E até de fé.
Eu admiti que, mesmo sofrendo tanto com sua partida, eu não me arrependia nem por um segundo de ter me envolvido com ela tão profundamente. Agradeci a Deus, de coração mesmo. Comecei a pedir para Ele nos consolar, para eu ter alguma vontade de fazer coisas na vida, além de chorar. Então, um dia, dentro de um Uber, veio um pensamento à minha mente, que eu espero que sirva para mais alguém. É bem simplório, dá até meio uma vergonha de compartilhar, mas foi uma virada para mim, uns vinte dias depois de ela ter morrido. Eu pensei: todo mundo vai morrer, ela só foi antes.
Desde que essa frase surgiu dentro da minha cabeça, eu passei a ver a morte, em geral, com muita naturalidade. Antes disso, a partida da Sofia parecia um golpe baixo do destino, uma crueldade, uma injustiça. Essas sensações me deixavam tão angustiada e exausta, porque não há como reverter. Como uma vez minha mãe disse: “Agora, não tem mais jeito”. Vou sentir saudade, nunca mais vou ser a mesma, vou seguir sem entender, a vida mudou irreversivelmente, mas não tem jeito. Odiar o mundo não vai trazê-la de volta. E, no fundo, eu sei que há tanta beleza, tanto do que ela gostava ao redor: cachorros, girassóis, adesivos, esmaltes coloridos.
No ano da despedida, 2017, lancei o meu primeiro romance. A personagem principal se chama Sofia e a dedicatória é “Para Sol Gomes”. No lançamento em SP, alguém perguntou sobre a pessoa para quem o livro era dedicado. Ela estava tão bem nessa época, na minha cabeça, o pior já tinha passado, ela estava curada do câncer nos ovários e eu nem imaginava que o pior ainda estava por vir. Também não imaginava que alguém poderia fazer esse tipo de pergunta. Eu me emocionei, explicando que era a minha prima, que eu amo muito e que tinha ficado doente. Expliquei que o livro era sobre juventude e eu tive, durante a doença, muito medo de ela nunca chegar a ser uma jovem e poder aproveitar essa fase maravilhosa, desbravando o mundo e conhecendo gente.
Às vezes, pode acontecer de o nosso pior medo se concretizar. Eu perdi a Sofia, mas, no fim das contas, não perdi a minha fé. Agora, eu acho que isso tudo o que vivi pode ter algum tipo de utilidade, nem que seja para eu deixar de chorar por bobagens e a aproveitar mais tudo ao meu redor, como ela aproveitava. Eu ainda não sei se devo ou não olhar as fotos. Penso que é melhor não, mas acabo olhando. Quero evitar pensar nela, mas se pudesse fazer um tipo de operação para esquecê-la, como naquele filme “O Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças”, jamais faria. Sossô vai viver sempre na minha memória e, na mais doce de todas, ela não está comigo, fui espectadora. É uma cena real que sempre volta à minha cabeça. Natal de 2016: ela estava de vestido rosa com os ombros à mostra, sentada no sofá ao meu lado. Algumas pessoas da família estavam dançando, então sua mãe a puxou para dançar também. De mãos dadas com sua mãe, ela girava e sorria, girava e sorria. Eu sorria de volta. E sempre que a revejo assim, girando, sorrio uma vez mais, às vezes sorrio e choro ao mesmo tempo.
Sabrina Abreu é jornalista e autora de cinco livros, entre os quais “O Último Kibutz”, dedicado a Sofia. Saiba mais sobre ela em http://sabrinaabreu.com.br/