Inspiração - Reflexões
O que aprendi com meus pacientes idosos em processo de luto
Dizer que a vida é cheia de perdas não representa novidade alguma. Porém, ainda me surpreende como não estamos preparados para perder. Nada, nem ninguém. Sabemos que a empresa está falindo, mas nos recusamos a acreditar que seremos demitidos. Sabemos que o corpo padece, e negamos os sintomas da doença. Sabemos que estamos nessa vida de passagem e nos assombra falar sobre a morte.
Teoricamente, a morte surgiu em minha prática profissional há algum tempo. A escolha pela velhice inevitavelmente nos aproxima de temas relativos à morte, mesmo que não seja exclusividade dessa etapa da vida. Porém, foi apenas na Clínica que tive contato direto com aqueles que sobreviveram à morte de um ente querido. Estou aprendendo a lidar com o processo de luto daqueles que ficam depois que seres amados morreram. Não é fácil.
O luto é entendido por Freud como a perda de um elo significativo entre uma pessoa e seu objeto de amor, que pode ser uma pessoa, mas também um animal, um momento ou fase da vida, um status social, um trabalho, etc. Aproxima dois momentos singulares da existência: vida e morte, e, entre eles, uma perda. Isso justifica que o luto e a morte não são processos vividos apenas na fase mais envelhecida da vida, embora nesse período perdas sejam mais recorrentes e tragam maior dificuldade em lidar com o sofrimento psíquico. Isso acontece porque o velho está menos suscetível à busca de novos objetos de amor para direcionar a energia psíquica, outrora direcionada ao objeto que foi perdido.
Ao longo dos últimos meses diversos idosos, todos homens, chegaram até mim buscando ajuda para lidar com a dolorosa perda de suas esposas. Todos estiverem casados por 30 ou 40 anos e viviam juntos, e apenas os dois. A maioria deles vivenciou um longo e intenso processo de perda de suas esposas, antes de sua morte – várias delas por câncer. No entanto, ter acompanhado o processo de doença de suas esposas não tornou o dia final da luta menos doloroso.
Na Clínica, esses homens me ensinaram que não importa o quanto estivessem conscientes de que a morte, mais cedo ou mais tarde, chegaria, alguns até pela idade avançada sua e de sua companheira; nunca estamos prontos. Ensinaram-me, também, como é preciso de apoio de outras pessoas para, depois que a morte vem, elaborar a perda decorrente desse momento difícil. Comprovaram-me, ainda, uma suspeita que já vinha aflorando em mim desde as primeiras pesquisas na área: a de que a velhice traz sim sonhos, expectativas, planos de futuro. E que quando eles são interrompidos pela morte, e sempre serão, há uma energia psíquica imensa sem lugar para ficar. É com ela que trabalhamos na Clínica. Novos sonhos precisam ser planejados, ou os antigos reinventados. Novos objetos de investimentos serem encontrados. Palavras que não foram ditas precisam do seu lugar de direito.
Coloco a palavra como lugar central. Encorajo-os a ensaiarem ali aquilo que gostariam de ter dito e não tiveram tempo, coragem ou palavras. Ensaiamos com gestos, com lágrimas, com poemas. Ensaiamos representando as palavras nas imagens de lugares, os lugares que permaneceram pela lembrança da visita ou pelo desejo de conhecer. Damos lugar às palavras que não foram ditas, para que sejam libertas do coração aflito.
Muitos chegam manifestando interesse em medicação – para dormir, para não acordar, para não sentir. Abordamos isso também. Que a perda precisa ser vivida. Que “é preciso doer agora, para não doer para sempre”, como disse minha analista certa vez em que eu própria passava por um processo de luto. Que a tristeza é permitida, assim como os sorrisos e gargalhadas em meio às lágrimas, que surgiram após uma lembrança boa ou engraçada em companhia da pessoa perdida. Que a lembrança vai vir sempre e não é possível enterrá-la junto com o corpo da pessoa morta, porque há uma parte das memórias que lhe pertence. Como escreveu Ana Claudia Quintana Arantes em “A morte é um dia que vale a pena viver”*, “o enlutado jamais será privado das lembranças ou dos sentimentos. O Amor não morre com o corpo físico. O Amor sempre permanece” (p. 189). A diferença é que não haverão mais dois pratos à mesa, nem duas pessoas para decidirem a visita a ser feita no final de semana, nem necessidade de optar por um lado da cama. Mas que apesar de, a vida segue. E novos investimentos precisam ser feitos.
Talita Baldin é atriz e psicóloga, mestre e doutoranda em Psicologia pela Universidade Federal Fluminense, psicóloga clínica em Niterói-RJ. É daquelas pessoas que se comove com os breves suspiros da vida.
*ARANTES, A. C. Q. A morte é um dia que vale a pena viver. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2016.