Inspiração - Reflexões
Não consigo dormir, alguém acordado para teclar?
O que me levou a estudar o assunto dos pais enlutados que se comunicam com outros em igual situação através das redes sociais na web foi a experiência de acompanhar, de perto, há alguns anos, a dor de Ercílio, um colega de trabalho. Ele havia vivenciado a maior tristeza de sua vida quando Thays, sua filha de nove anos, faleceu de leucemia. Ao vê-lo tão desesperado com esta morte, tive a iniciativa de escrever um livro infantil sobre o amor que existia entre eles, um sentimento que sem dúvida seria eterno, apesar da partida física da filha. Ercílio sentiu-se extremamente agradecido e emocionado, participou comigo da mesa de autógrafos na noite do lançamento do livro e também distribuiu a sua assinatura. No entanto, logo depois, suicidou-se por não suportar mais a dor que o dilacerava dia após dia. Este fato desencadeou em mim o desejo de estudar formas que pudessem contribuir para evitar que, no futuro, outros pais enlutados dessem fim à própria vida.
Nesta mesma época, soube que a psicóloga Ana Nicolaci-da-Costa, da PUC-Rio, vinha estudando o impacto da Internet na subjetividade humana e o quanto este fenômeno fazia com que determinados ambientes online se tornassem tão “naturais” como outros offline. Foi assim que, sob sua orientação, decidi desenvolver a minha tese de Doutorado, intitulada “Filhos que vão, pais que ficam: a web como recurso de comunicação durante o luto”. Entrevistei pais enlutados que participavam de comunidades criadas em redes sociais com o objetivo de trocarem experiências em comum. Descobri que participavam destes grupos virtuais porque raramente encontravam o tão desejado acolhimento no ambiente familiar ou no círculo de amizades de seu convívio. Explicaram que se ressentiam com as frases de consolo, certamente ditas com uma intenção positiva, mas que ferem ao invés de ajudar, tais como: “Não chore porque seu filho vai sofrer”, “Ainda bem que você tem outro filho”, “Com o tempo você vai esquecer e a dor vai passar”… Ao buscarem ouvidos atentos para expressarem seus sentimentos, são interrompidos com mensagens de estímulo para mudarem de assunto ou pensarem em outro tema. No intuito de fazer com que os enlutados reajam, as pessoas mais próximas acabam não ouvindo o que eles realmente querem dizer.
A conseqüência disto é que passam a se sentir inconvenientes quando querem falar do filho que se foi. E, no silêncio, sentem-se sozinhos. Passam a viver uma espécie de teatro, fingem que tudo transcorre normalmente, escondem as lágrimas e os lamentos, demonstram força, se revestem de uma máscara que sorri para a sociedade, no intuito de ocultar a dor de sua realidade interior e satisfazer os demais. Mas, por dentro, continuam com a necessidade de desabafo, choram escondidos e sofrem de insônia. Estremecem com as datas comemorativas tais como Natal, Ano Novo, Dia das Mães ou dos Pais, aniversários etc. Afirmam que nas comunidades da Internet descobrem relatos de histórias similares, onde é possível falar e ser ouvido sem prévio agendamento, em um ambiente sem cobranças para sorrir e “rapidamente voltar a ficar bem”. As palavras postadas como resposta têm credibilidade e valor porque são ditas por “quem entende do assunto”, afinal afirmam que somente quem passou por isso conseguirá entender a linguagem desta “tribo”. Um ponto levantado pela psicóloga Mariana Matos é a percepção de que a escrita nas redes sociais atende a uma necessidade de externar os sentimentos de dor e tristeza diante da morte de um ente querido. E esta “válvula de escape” se mostra ainda mais essencial quando os enlutados são incentivados a não falar a respeito deste assunto abertamente. Eles encontram nas interações da web o acolhimento que abranda a dor e gera uma sensação de união e bem-estar.
A necessidade que muitos pais enlutados sentem de postar as fotos de seus filhos falecidos é explicada pelas antropólogas Ilana Strozenberg e Myriam Barros, que refletem a respeito do significado e importância das fotografias de família, que têm a capacidade de capturar um momento vivido na experiência real, sendo percebidas como fragmentos da história das relações familiares, como uma narrativa de memória de um passado que efetivamente aconteceu, despertando lembranças de momentos importantes para todos os envolvidos.
A participação nas comunidades online é uma forma que os pais enlutados encontram para lidar com a “ameaça de desaparecimento”. A psicóloga Érika Pallottino utiliza este termo para nominar a sensação de profunda dor e angústia que alguns pais sentem quando, após a morte de seu filho, ele deixa de ser citado nas rodas familiares e de amigos. Surge também o temor de que a trajetória de vida do filho falecido seja esquecida na memória daqueles que fizeram parte do seu círculo de relacionamentos. Um luto parental menos sofrido passa a ser um somatório de lembranças afetivas que tornam a permanência do filho inabalável e a conexão com ele sempre viva. O luto integrado inclui no ciclo vital dos enlutados a experiência de terem sido os pais desse filho, onde a sensação da perda deixa de representar uma ameaça do desaparecimento, já que adquirem a certeza de que a presença do filho será sempre eterna. Érika complementa que eles “aprendem que calar, adoece e aprendem que não falar, não faz esquecer”. Cabe ressaltar que este sentimento não é restrito aos pais enlutados, mas se manifesta na fala dos irmãos do falecido. Cito uma frase de Carolinne Kandelman, uma jovem que recentemente vivenciou a morte de seu irmão Rodrigo: “Aos poucos percebi a importância de falar sobre o Rodrigo, de deixá-lo vivo sempre, todos os dias. Comecei a compreender que, apesar de fisicamente ele não estar mais aqui, ele continua vivo e presente na minha vida, hoje e todos os dias”.
Embora exista uma concentração maior de mulheres nas redes sociais externando a sua dor pelo luto de um filho, as mães não necessariamente sofrem mais do que os pais. A psicóloga Érica Quintans enfatiza que: “os homens sentem a perda mas falta o espaço social para que expressem seus sentimentos”.
Durante a minha pesquisa, conheci Miralda e Consuelo. Miralda cometeu sete tentativas de suicídio. O seu desespero foi desencadeado depois que sua filha Vitória morreu afogada. A severa depressão gerou uma permanente sensação de desespero e revolta. Mineira, residente de uma pequena cidade, ela não encontrava nenhuma outra mãe enlutada com quem pudesse conversar. Até que acessou o Orkut em busca de informações sobre o luto. Consuelo, do Rio de Janeiro, leu suas mensagens carregadas de tristeza e a adicionou em sua rede, contou sobre os árduos dias de luta que passou no hospital com seu filho Lucas, que acabou falecendo de câncer. Tornaram-se grandes amigas e passaram a conversar diariamente. Consuelo diz que “cada palavra direcionada a ela, servia para mim também”. Ao tomar conhecimento do quadro crítico de Miralda, imediatamente a aconselhou a procurar uma terapia especializada em luto. Atendida por um profissional gabaritado, ela pouco a pouco deu um passo adiante em direção à recuperação de sua saúde emocional e deixou de lado as intenções suicidas. Com a extinção do Orkut, ambas migraram para o Facebook, quando Consuelo teve a iniciativa de criar o grupo Mães Coragem. Tempos depois, Miralda sentiu-se preparada para adotar uma filha e a chamou de Rebeca. Consuelo foi convidada por Miralda para ser a madrinha de Rebeca. Através deste elo, estabeleceram oficialmente um vínculo familiar. Mas já tinham virado “família” muito antes disso. Miralda ainda chora por Vitória. Consuelo ainda sofre por Lucas. As saudades serão eternas. Mas ambas descobriram que é possível eternizar as memórias de seus filhos e voltar a sorrir por muitos outros motivos. Assim como esta história, existem inúmeras outras repletas de afeto, solidariedade, compreensão e apoio mútuo.
Eu me alegro muito por Consuelo e Miralda. E lamento demais pelos(as) muitos(as) “Ercílios(as)” que um dia desistiram de viver… Espero que este texto incentive os enlutados a iniciarem uma terapia especializada e a conversarem com outras pessoas sobre a sua dor, procurando especialmente quem já passou por isso, esteja esta pessoa do lado de fora ou do lado de dentro de uma tela, seja durante o dia ou ao longo da madrugada, especialmente quando surge a vontade de desabafar e dizer: “oi, não consigo dormir, alguém acordado para teclar?”…
Betty Wainstock é psicóloga, com Doutorado em Psicologia e Pós-Doutorado em Estudos Culturais, Professora da ESPM e Sócia do Instituto de Pesquisa Ideia Consumer Insights. Todos os dias se inspira ao entrevistar pessoas e analisar histórias tristes ou felizes, ouvindo experiências, medos e sonhos provenientes de diferentes nacionalidades, idades, classes sociais e sexo, seja em grupo ou individualmente, faça chuva ou faça sol, seja dia ou noite, em uma sala de espelho, em suas casas ou nas ruas, mas sempre no interior de suas mentes e almas.
Referências
DE BARROS, Myriam Lins; STROZENBERG, Ilana. Álbum de família. Comunicação Contemporânea, 1993.
MATOS-SILVA, M. Teclando com os mortos: um estudo sobre o uso do Orkut por pessoas em luto. Tese (Doutorado) – Curso de Pós-Graduação em Psicologia Clínica, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, 2011.
NICOLACI-DA-COSTA, A. M. A análise de discurso em questão. Psicologia: Teoria e Pesquisa, v. 10, v. 2, 317-331, 1994.
________. Revoluções tecnológicas e transformações subjetivas. Psicologia: Teoria e Pesquisa, v. 18, n. 2, 193-202, 2002.
QUINTANS, Erica Tavares. Eu também perdi meu filho – Luto paterno na perda gestacional / neonatal. Diss. PUC-Rio, 2018.
WAINSTOCK, Betty C. Filhos que vão, pais que ficam: A web como recurso de comunicação durante o luto. 2013. Tese de Doutorado. PUC-Rio.
http://www.institutoentrelacos.com
Observações
Os nomes verídicos de Miralda e Consuelo foram mantidos com a autorização das mesmas.
Para fazer parte do Grupo Mães Coragem, é preciso enviar uma solicitação para https://www.facebook.com/consuelo.melo.503