Esse projeto é um convite para quebrar o tabu. Um canal de inspiração e de informação para quem vive o luto e para quem deseja ajudar

“Se tudo der muito certo, vai dar ‘errado’ um dia”

Jornalista especializada em viagens, Rachel Verano morou em diferentes países e teve durante 15 anos a companhia do cachorrinho Google em suas andanças pelo mundo. Nesse texto escrito logo após a partida dele, ela conta como ter um animal na família permite observar de camarote o ciclo completo da vida, do nascimento à morte

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Aquela quinta-feira do inverno lisboeta amanheceu linda. Céu azul sem nuvens, sem vento, sem frio. O GPS insistiu em um caminho alternativo; primeiro à beira-mar, depois à beira-Tejo. Me lembro do reflexo brilhante e intenso do sol na água, do calor no meu rosto, da sensação de ter o tempo suspenso. Um silêncio infindável com direito a cenário e moldura. Tudo em volta se mexia em slow motion, menos o vendaval dentro de mim. No meu colo, embrulhado na manta mais fofa que encontrei em casa, meu companheiro por 15 anos e seu olhar perdido. Eu só queria que ele visse o rio, o mar, o sol…

O que aconteceu na sequência, entre o ligeiro atraso da veterinária, que chegou às 10h07, e a mensagem que eu enviei comunicando pela primeira vez o ocorrido, às 10h31, foram os 24 minutos mais longos da minha vida. Um filme que agora passa em flashes e trailers incontáveis vezes por dia. A mesa fria de metal. A perninha raspada a máquina para alcançar melhor a veia. A música do Salvador Sobral (que eu detesto!) ao fundo. A manta fofa de florzinhas. Uma montanha-russa de emoções. Seringas, agulhas, torniquetes, líquidos cor de laranja, abraço apertado, olho no olho, suspiro, fim. FIM.

Google chegou numa noite do outono paulistano de 2004, uma bolinha branca disforme cheia de personalidade que eu precisei aprender a amar. Foi rápido, tínhamos várias coisas em comum. Ele adorava ouvir música calminha, especialmente de vozes femininas. Colava o ouvido na caixa de som e ficava mexendo a cabecinha de um lado para o outro, como se estivesse entendendo a letra. Tinha verdadeira paixão por tomates cereja (que comia sempre), presunto cru (que ganhava muito de vez em quando) e sorvete (raramente tinha direito ao fim de um pote, mas tinha). Mas, sobretudo, gostava de viajar.

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A primeira vez que cruzou o Atlântico tinha pouco mais de um ano – e ainda repetiria o feito, entre idas e vindas, umas quatro vezes. Morou em São Paulo, em Portugal, na Espanha, no sul da França. Ia à praia tanto no Litoral Norte de SP ou no Patacho, em Alagoas, quanto no Algarve e na Côte d’Azur. Nem me lembro de quantas vezes abri mão de viajar de avião para que ele pudesse acompanhar a aventura, ainda que isso significasse dias sem fim de estrada. Conheceu a neve nos Pirineus e na Serra da Estrela. Estava no banco de trás na caça aos mais bonitos campos de lavanda da Provence. Era insider em Barcelona, Valência, Lisboa, Aix, Paris. Se comportava como um lorde em hotéis e restaurantes. Fazia longas viagens na janelinha, sempre curioso, sempre de olho na paisagem.

Naquela quinta-feira, ele não viu nem o mar, nem o rio, nem o sol…

Google viveu superbem até uns quatro meses antes daquela quinta-feira. Estava surdo, é verdade, e já tinha dificuldades para subir escadas, coisas da velhice. Rabujento e temperamental, latia horas para a parede que ecoava o seu latido. Meu coração ficava apertado cada vez que aparecia mais uma limitação física. Primeiro deixou de conseguir subir no sofá para dormir na sua almofada predileta. Depois foi o degrau do quintal – parava e ficava olhando o obstáculo um tempão, ensaiando algumas tentativas, para então dar a volta ou pedir ajuda. Mas abanava o rabinho para explorar os montes perto de casa, ir à praia ou ao café (de onde muitas vezes precisava voltar no colo de cansaço).

Foi durante um banho que descobri um abscesso na gengiva e logo veio o diagnóstico: tumor no maxilar. Não havia o que pudesse ser feito, qualquer tratamento seria muito invasivo e violento. O remédio, então, seria o mais amargo: esperar que o tempo fosse gentil. E ele foi – só que para mim, foi também rápido demais. E na semana final, quando a veterinária finalmente deu o veredito, eu não estava preparada. Acho que nunca estaria. Voltamos com ele para casa para processar tudo, munidos de injeções de morfina para aliviar a dor e da promessa de regressar nos dias que se seguiriam. Passei no supermercado e comprei tudo o que ele mais gostava. Não me esqueci do presunto cru. Dois dias depois, ele parou de comer, não conseguia mais beber água. Havia chegado a hora.

Não sei o que mais doeu. Se foi vê-lo sofrer cada dia mais, se foi ver a minha enteada de 9 anos se despedindo dele, deitada no chão ao seu lado e aos prantos, se foi acordar naquela manhã de quinta-feira e tirá-lo da caminha para levá-lo para aquela missão, ou se foi voltar pra casa e ainda encontrar rastros dele por todo canto. Sei que nos dias que se sucederam o que mais doeu foi o peito – uma dor física que fazia faltar o ar. Confesso que muitas vezes me questionei estar sofrendo daquele jeito por um animal – mas entendi, por intermédio de amigos queridos, que luto é luto e me permiti viver tudo aquilo sem “vergonha”. Chorei no meio da rua, ao telefone, no meio de mensagens… com amigos e até com quase desconhecidos. Eu precisava falar.

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Ter um animal na família é ter a chance de observar, como espectador, o ciclo completo da vida. Se tudo der muito certo, vai dar “errado” um dia. Eles nascem, crescem, envelhecem e morrem muito mais rápido que nós. A partida do Google foi a experiência mais próxima que eu tive da morte – não apenas emocional, mas física também. Na hora da injeção letal eu estava lá, abraçada a ele, como fiquei todas as outras vezes em que ele precisou tomar injeções. Olhei bem dentro dos olhinhos dele e agradeci, meio desgovernada e desesperada, tremendo. De repente a expressão tensa que ele tinha no rosto desde que havia ficado doente desapareceu. O corpo ficou leve e ele foi deitando calmamente sobre as patinhas, de olhos abertos, sereno. Cobri com a manta e me deixei ficar ali com um vazio enorme, que parecia nunca mais passar. É esse vazio que agora me presenteia todos os dias com as melhores lembranças e que tem me ensinado muito sobre intermitências e finitudes.