Inspiração - Belas Histórias
Meu filho é meu herói
A Catarina nasceu em 2009, pequenininha, um pouco antes do previsto – mas veio forte.
A sensação de ser pai foi arrebatadora. Com poucos dias de vida eu e ela já estávamos passeando pra todo lado. A experiência de ser pai morando em uma cidade que eu adoro era um sonho diário. Eu tirava centenas de fotos dela – comprei câmera nova, lentes, uma filmadora HD. Aproveitava com a minha bebê tudo o que Nova York podia oferecer. Mostrava cada canto pra ela: cada playground do Central Park, os carrosséis, o zoológico. No inverno, mostrei pra ela a neve cobrindo as árvores, passeios e gramados; brincamos de escorregar no trenó. No verão, montávamos uma piscininha no gramado do parque, enchíamos de água e ficávamos brincando tardes inteiras.
Passeávamos de metrô, de ônibus, de barco. Andávamos tanto que com antes mesmo de ela completar 1 ano de idade as rodas de borracha do carrinho dela gastaram completamente e precisei trocá-las. Quando a Cata ficou um pouquinho maior, apresentei pra ela restaurantes diferentes – os chineses, os BBQs que eu adoro, os peixes de City Island -, exploramos mais e mais. Começamos a frequentar aulas e atividades para crianças pequenas. Fomos às praias próximas à cidade, aos parques mais distantes, aos museus mais afastados. Gastamos tardes e tardes no Museu de História Natural, vendo os ossos de dinossauros. Éramos parceiros de exploração – ela, vendo tudo pela primeira vez. Eu, maravilhado com o mundo através dos olhos dela.
Em 2011, a difícil decisão de voltar pra São Paulo. Tirei um mês de férias para cumprir o máximo de itens do nosso bucket list e chegamos de mudança quando ela havia acabado de completar dois anos.
O ano seguinte não foi fácil: o reajuste foi grande, exigiu energia, levou tempo. Estava adorando meu trabalho, porém ao mesmo tempo estava me exaurindo para ajudar minha (agora ex) mulher a se adaptar também, e a enfrentar seus próprios desafios. Iniciei terapia, na qual sigo até hoje.
No começo de 2013, me dei conta que minha saúde nunca havia estado tão ruim. Procurei uma nutricionista, entrei em uma dieta rígida e em 6 meses perdi 30kg. Comecei a praticar exercícios, caminhar e descobri a corrida, que passou a ser um hábito quase diário. Minha saúde estava melhor do que nunca, eu estava feliz com meu trabalho e realizadíssimo no papel de pai.
Naquele exato momento da minha vida havia um delicado e preciso equilíbrio, mas esse equilíbrio não durou muito tempo. Tivemos a oportunidade de mudar do apartamento em que morávamos para uma enorme casa de propriedade da família da minha ex, que estava desocupada. E essa decisão levou inevitavelmente a uma série de alterações na rotina que eu havia construído.
O trabalho de reforma e manutenção da casa virou uma preocupação constante. O cuidado com a segurança da casa tirava meu sono. O hábito da corrida perdeu espaço em alguns meses. Eu voltei a comer compulsivamente. Claro, havia o conforto do espaço maior e a conveniência da proximidade do meu trabalho – quem não gostaria de escapar do trânsito de São Paulo? – mas a conta não fechava.
Antes da mudança, eu caminhava, feliz, para um estilo de vida cada vez mais minimalista (que hoje, é a definição mais próxima de como vivo) e de repente me vi dependente de um aparato muito maior e oneroso do que eu e minha família necessitávamos. Tínhamos espaço, objetos, coisas, preocupações, em quantidades incrivelmente superiores a que precisávamos, ou mesmo podíamos usufruir.
A decisão sensata nessas horas, claro, seria ter voltado atrás. Mas infelizmente essa lucidez estava muito fora de nosso alcance.
E foi então que um novo bebê decidiu vir ao nosso caminho.
Eu não me lembro ao certo como reagi a notícia da gravidez. O assunto “segundo filho” nunca havia sido discutido suficientemente entre eu e a minha ex. Apesar de muitas conversas a respeito, e simplesmente não parecia que tínhamos chegado a um veredito. Mas a verdade íntima, que eu guardava para mim mesmo, e que algumas vezes confidenciei para os amigos: eu não via um motivo pra querer ter um segundo filho. A experiência como pai da Catarina, para mim, era completa. Eu não sabia dizer o que um segundo filho me ensinaria que eu já não tivesse aprendido com a Catarina. Não sabia dizer que emoções um segundo filho me revelaria que eu já não tivesse descoberto com a Cata.
Atravessei toda a gravidez muito blasé, pouco contagiado com a expectativa do nascimento. Acompanhei as consultas e exames, ajudei a montar o enxoval – mas nem de longe senti a mesma empolgação que havia sentido enquanto esperava a chegada da Catarina, seis anos antes. Eu não estava triste, longe disso – talvez fosse mais um longo estado de “esperar pra ver”. A gravidez correu completamente tranquila, sem nenhum susto.
Em uma noite de domingo de abril de 2015, fomos pra maternidade. O trabalho de parto foi rápido e, às nove da noite, Leonardo chegou. Enquanto ele era pesado e avaliado pelas enfermeiras, tive tempo de tirar uma única foto dele. Ele veio para o meu colo. Eu o abraçava, e fui tomado de emoção. As fichas começavam a cair, finalmente.
De repente, menos de 12 minutos após Leo ter nascido, enquanto eu o ninava, minha ex-mulher deu um grito: “ele está roxo”.
As 40 horas seguintes foram uma sucessão de falsas esperanças, exames inconclusivos e doses cavalares de Rivotril. A cada 6 horas, mais ou menos, visitávamos Leo na UTI para vê-lo em uma incubadora, preso a sondas, tubos, fios, aparelhos, monitores. Os índices de oxigenação eram baixíssimos, não havia diagnóstico claro (apenas sintomas) e nenhum tratamento sustentava uma melhora por mais do que algumas horas. Rezei o quanto pude.
Na terça-feira, por volta de uma e meia da tarde, fomos chamados pela médica de plantão para ouvir a notícia que nenhum pai ou mãe deveriam receber.
Desabei.
Eu lembro pouco dos três meses seguintes. O tempo corria em um ritmo bastante diferente do habitual. Dormia bastante, saía de casa apenas para ir à terapia, três vezes por semana. Meus pais, irmãos e meus amigos mais próximos vinham me visitar com frequência. Aos poucos, passei a andar os 50m que me levavam até o supermercado ao lado de casa. Comecei a querer desenhar, pintar. Fiz um quadro de recordações com aquela única foto e algumas lembranças que tinha do Leo: uma carta da Catarina, uma camisa que tinha comprado pra ele. Plantei uma horta de bocas-de-leão.
E usei esse tempo para tentar entender.
Eu sou naturalmente inclinado a fazer planos. A estabelecer expectativas, a conceber projetos e a trabalhar para fazer com que aconteçam. Essas minhas características pessoais me levaram a seguir por uma carreira profissional na área de Planejamento Estratégico.
E bum.
De uma hora pra outra, nenhuma das técnicas de raciocínio, nenhum dos modelos que eu sabia aplicar tão bem faziam qualquer sentido.
Ao mesmo tempo em que a ciência não tinha sido capaz (ou rápida o suficiente) pra salvar o Leo, eu não estava interessado em buscar respostas na religião. Nenhum desprezo – eu simplesmente não estava interessado em ouvir que “as coisas acontecem por um motivo”. Eu conhecia essas explicações. E sabia que elas não me bastavam.
Eu queria poder apreciar o absurdo do que eu estava vivendo não através de explicações prontas, mas de sua forma mais crua. Eu não precisava entender, eu precisava sobreviver. E o ponto de partida mais honesto era assumir que o que havia acontecido era algo completamente alheio ao nosso entendimento, a nossa capacidade de processamento. Era um acontecimento brutalmente randômico, aleatório, indiferente.
Era um fato da natureza. A natureza não julga, não predetermina, não escolhe. Uma alteração congênita em algum aspecto da anatomia do Leo, completamente aleatória, impediu que ele se adaptasse à vida fora do útero materno.
Era um acontecimento da vida. Aleatória. Imprevisível.
Logo veio o John Lennon lembrar – naquela música super famosa que ele compôs para o filho, vejam só – que a vida é o que acontece pra você enquanto você está ocupado fazendo outros planos.
E por fim, era uma lição de amor – porque o caminho pra sair dessa precisa ser pavimentado com uma quantidade extraordinária de carinho.
A primeira, e imediata, lição de amor, veio, claro, da minha família, irmãos e amigos. A quem de pronto se juntou o Luciano Oliveira, que não saiu um minuto do meu lado.
Uma lição gigante também dos meus chefes, amigos e equipe da Wieden + Kennedy, que cuidaram de tudo – tudo – para que eu pudesse enfrentar meu luto por completo. André Gustavo, Fernanda de Lamare, Luana Azeredo, Paula Obata: a gratidão de uma vida para vocês.
Nesse tempo eu li, assisti filmes, conversei, fiz terapia. Tudo que aprendi me fez ter mais segurança de que entender essa porrada como uma ação imprevisível e indiscriminada da natureza e da vida era, sim, uma iniciativa mais frutífera do que buscar interpretar um motivo.
Mas aí, tudo isso tem uma outra parte.
Uma vez que você atravessa esse sofrimento, uma vez que você se recupera da maior dor que se pode passar na vida, o que você faz com isso?
Só alguém muito idiota continua vivendo a vida do mesmo jeito, pensando igual. Tomando as mesmas decisões.
Voltei ao trabalho mais focado, amadurecido, capaz de tomar decisões difíceis, fazer escolhas duras e encarar suas consequências. Tive as melhores avaliações da minha carreira, e conquistei ainda mais sucesso desde então.
Em casa, ainda houve um período de rescaldo – as decisões não foram imediatas – mas finalmente, e de comum acordo, o casamento acabou. Mas antes disso tivemos mais um filho, o Bernardo. E, nem por um segundo, tive a menor dúvida de que, acontecesse o que acontecesse, eu aprenderia muito com ele e sentiria novas e diferentes emoções. Como sei que vou sentir com cada filho que ainda tiver.
Alguns meses depois, encontrei o amor da minha vida. A parte irônica é que eu já a conhecia. Mas eu jamais saberia identificá-la se não tivesse passado por tudo que passei. No momento, vou dizer apenas que a altura a qual a Juliana me leva é infinitamente maior do que a profundeza à qual eu já desci.
Entre a Catarina e o Bernardo, existe o Leonardo.
O Leo é o melhor segundo filho que eu podia querer ter tido.
O maior aprendizado que ele me trouxe, nos breves dois dias em que esteve na Terra, foi o de assumir a responsabilidade pela minha própria felicidade.
Meu filho é meu herói.
Rodrigo Maroni é vice-presidente de estratégia da agência África e presidente do Grupo de Planejamento de São Paulo