Inspiração - Belas Histórias, Como eu me sinto, Reflexões
Quando meu pai agarrou uma pedra
Pioneiro na documentação social, o fotógrafo Raul Garcez chegou ao fim dos anos 1980 em uma fase ótima da carreira, com reconhecimento entre os pares, boas condições financeiras, um casamento de mais de uma década e uma filha de quase sete anos. Em julho de 1987, quando ele tinha apenas 37 anos, a trajetória teve um fim inesperado. Sua filha Julia Garcez escreve sobre a experiência de quem lhe deu o sobrenome do qual tanto se orgulha.
Durante uma aula de reforço de Matemática, o professor do Ensino Médio mandou um recadinho aos alunos desinteressados: no mar, ou você segura uma pedra ou segura uma boia. Embora prestasse bem menos atenção do que deveria às palavras dele, adorei a frase, que virou mantra para mim. Ela me vem à cabeça quando penso no meu pai. Neste mar revolto que é a vida, quase trinta e três anos atrás, ele não conseguiu segurar a boia e acabou agarrando a pedra.
Até hoje não é fácil dizer isso. Mais de trinta anos atrás, meu pai agarrou a pedra. Realizações não faltavam. Inteligentíssimo, fazia sucesso na profissão, ganhava (bem) exercendo atividades com que boa parte dos colegas podia apenas sonhar, era referência. Meu pai agarrou a pedra. Não vivia isolado: numerosos amigos, família, mulher, filha, amor, compreensão. Meu pai agarrou a pedra. Com o corpo estava tudo certo; era lindo e só tinha 37 anos. Mesmo assim, meu pai agarrou a pedra.
Como se não bastante ele ter agarrado a pedra, havia a questão do porquê. Para quem ainda insiste em perguntar motivos, só posso dizer que não há nenhum. Reclamo de quem faz isso, mas eu mesma passei anos buscando argumentos para explicar o inexplicável. Levei um tempo para mudar o foco da questão. Afinal, todo mundo tem suas razões para agarrar a pedra em um momento ou outro — nem adianta fingir que não. Investigar as causas disso é como percorrer uma estrada que não dá em lugar nenhum. Mais interessante tomar a direção contrária. Pensar em quem ficou aqui, refletir sobre o que leva a esmagadora maioria a deixar a pedra de lado, agarrar a boia, bater os pés, nadar, chegar à superfície, seguir em frente nessa eterna desventura de viver.
O que se tira de uma experiência dessas? Difícil dizer. Não acho que torne alguém melhor ou mais elevado do que os outros. De qualquer ângulo que se olhe, é um acontecimento ruim, as mudanças que traz não são exatamente para o bem. Nunca (NUNCA!) vou agradecer por ter passado por isso. Mas há espaço para aprendizados bem importantes. Primeiro: existe vida antes da morte, como bem lembra a Bia Dias. Segundo: parafraseando Valter Hugo Mãe, a felicidade também se compõe da soma de muita tristeza. Terceiro: Visconde partido ao meio só existe no conto do Italo Calvino. Não dá para compartimentar uma pessoa e jogar as virtudes para um lado e as fraquezas para o outro, até porque o lado bom talvez só exista por causa do lado ruim. E, finalmente, “in the end, the love you take is equal to the love you make”. Sábios Beatles.
Faço parte de um coro cada vez mais escasso de humanistas, para quem uma pessoa vem ao mundo dotada de certos direitos pelo simples fato de ter nascido; não precisa nada mais do que isso para merecê-los. Mas junto com esses direitos vêm responsabilidades, que assumimos pelo simples fato de termos vindo parar aqui. Gostando ou não, querendo ou não, concordando ou não. Sofrimento não desresponsabiliza, diagnóstico não desresponsabiliza, doença não desresponsabiliza.
Saber disso dói, mas também ajuda a sair do “eu” e pensar em “nós”. Neste mar bravo que vira e mexe tenta nos tragar, espremida entre duas opções, posso até ficar em dúvida, mas prevalece uma certeza: eu vou agarrar a boia, eu vou agarrar a boia, eu vou agarrar a boia.